“Nós jamais chegaremos a perceber o que se passa hoje em dia sem compreender o fato de que o capitalismo é na verdade uma religião” – G. Agamben.
Altíssima pobreza, de Giorgio Agamben, dá prosseguimento e às reflexões e análises iniciadas em obras anteriores e debruça-se sobre o universo sacerdotal, reconstruindo a genealogia de uma forma-de-vida, “uma vida que se vincule tão estreitamente a sua forma a ponto de ser inseparável dela”. Sua argumentação funda-se na ampla análise do legado mais precioso do franciscanismo – ao qual a história ocidental inúmeras vezes voltou-se como sua tarefa indeferível –, a concepção de vida que não se encaixa em vínculos de propriedade, que não é sujeita à posse, somente ao uso comum. Agamben parte de uma leitura profunda do monasticismo ocidental, de Pachomius a São Francisco, reconstruindo em detalhe a vida dos monges. O filósofo defende a tese de que a verdadeira novidade do monasticismo não encontra-se na indistinção entre vida e norma, mas na descoberta desta concepção, em que “vida”, talvez pela primeira vez, foi afirmada em sua autonomia; convepção a partir da qual a alegação da “altíssima pobreza” e do “uso” desafiam e emancipam-se da lei.
O filósofo, assim, desenvolve interessantes desdobramentos analíticos baseados na reflexão sobre as regras monásticas, enquanto conjunto de comportamentos, princípios, hierarquias e hábitos, não somente cotidianamente aplicados, como contínuas marcas de passagem temporal comunitária. Sua genealogia das formas monásticas, originárias da Idade Média, relaciona-as às liturgias, à vida comum, às instituições de poder.
Segundo Agamben, a grande aspiração dos franciscanos foi a reivindicação de uma vida e não de uma regra ou sistema de ideias e doutrinas, propondo uma simples identificação do texto sagrado com a vida, mais do que a leitura e interpretação do Evangelho, sua efetiva vivência. Portanto, elaboraram uma vida comum baseada na indiferenciação entre vida e regra, ou seja, uma vida que não é doutrina, nem conselho, nem moral, nem ciência, nem lei, porém, que funciona como cânone para uma comunidade.
A escolha da “altíssima pobreza” para definir seu modo de vida de seus seguidores, fez com que os franciscanos subvertessem a esfera do direito, abdicando de propriedades e de usos. Segundo Agamben, para além “da diversidade das posições e da sutileza dos argumentos teológicos e jurídicos dos franciscanos que intervêm na controvérsia, o princípio que, do início ao fim, se mantém inalterado e inegociável para eles pode ser resumido nos seguintes termos: o que está em questão, seja para a ordem, seja para seu fundador, é a abdicatio omnis iuris, isto é, a possibilidade de uma existência humana fora do direito”.
Pensar a vida como aquilo de que nunca se dá propriedade, mas apenas um uso comum, é, para o filósofo, o legado mais precioso do franciscanismo com o qual, tantas vezes, o Ocidente voltará a confrontar-se como se fosse sua tarefa indeferível.
Nas palavras do sociólogo Edson Teles, no texto de orelha do livro: “Seria possível imaginar um modo de vida em que o agir coincidisse com o ser? Como conceber uma vida não determinada pelo direito e pelas leis? Qual o limiar entre a vida e a regra? […] As “formas de vida” nascem de um ideal monástico, centrado na fuga do indivíduo para uma vida solitária e de entrega espiritual, e parecem dar origem a um modo de vida em comunidade”. De acordo com Teles, “‘altíssima pobreza’ é menos uma prática ascética de perfeição do que a possibilidade de uma vida fora do direito e da propriedade, como se ela a ninguém pertencesse e pudéssemos apenas dela fazer um uso comum. A vida franciscana não se situa no plano da doutrina ou da lei, mas na experiência de um modo de vida e de relação com o mundo”.
Como contextualiza a doutora em filosofia Valeria Bonacci, em artigo publicado na Revista Cult, “Altíssima pobreza é publicado contemporaneamente a Opus Dei: Arqueologia do ofício (Homo Sacer, II, 5, 2012), o texto em que culmina a genealogia teológica do governo encaminhada em O reino e a glória (Homo Sacer, II, 2;2007), e do qual constitui, em certo sentido, a pars construens. Se Opus Dei traz à luz o modo como a liturgia eclesiástica, elaborando a função sacerdotal, procura capturar a práxis contingente do homem e fazê-la coincidir no sacramento com a ação de Deus, Altíssima pobreza mostra o nascimento dos monastérios cristãos como uma tentativa de desativar o dispositivo litúrgico, de inverter a subordinação do agir particular do sacerdote ao governo divino, que se formula ligando a eficácia do sacramento à sua realização por meio da própria vida do monge”. Bonacci, partindo da definição de Agamben sobre o que seja uma regra, analisa: “O que é uma regra?” – pergunta Agamben – “se esta parece confundir-se sem resíduos com a vida? E o que é uma vida humana, se esta não pode mais ser distinguida da regra?”. A adesão do monge à regra não consiste na observação de preceitos determinados, mas diz respeito à relação entre a regra e a vida e entre a vida e a regra”. Portanto, se “o monge vive cada momento da sua vida em relação à regra, esta não é uma lei, mas, afirma Agamben, a “forma” que permite a cada momento constituir-se como “exemplar”, “paradigmático” da vida comum do monastério. […] O exemplo é uma forma de conhecimento que não procede articulando universal e particular, na medida em que põe em questão a sua oposição dicotômica: na lógica paradigmática, é somente a exibição do caso isolado como exemplar que define a regra constituindo um conjunto. Nesse sentido, o exemplo é um terceiro entre o universal e o particular, entre a regra e a vida, que não aparece, porém, senão através da relação dúplice entre eles, a sua indiscernibilidade”. Segundo Bonacci, as pesquisas “sobre a noção de potência que acompanham as indagações políticas de Homo Sacer permitem aprofundar na lógica do exemplo e caracterizar ulteriormente a relação entre regra e vida”. Conforme ela sintetiza, pensar “o uso como a dimensão da tensão irresolúvel entre regra e vida, da regra como exposição da vida, e da vida como aquilo que reenvia sempre a uma nova regra, equivale a pensá-lo como uma terceira dimensão, que, enquanto lugar de seu remetimento sempre renovado, consiste apenas na sua transformação, se dá sempre como “um novo uso”. Em tal sentido, o habitus e o uso emergem como a forma de uma ‘vida que se mantém em relação não só com as coisas, mas também consigo mesma no modo da inapropriabilidade’”.
Altíssima pobreza é o primeiro livro da quarta parte dos estudos reunidos sob o nome “Homo sacer”, na qual as noções de “forma-de-vida” e de “uso”, convergem enquanto investigações arqueológicas. Na série, Agamben investiga os “conceitos teológicos secularizados que governam nossa sociedade pretensamente laica”. “Homo sacer” é uma expressão do direito romano, referente a pessoas banidas, que podem ser mortas a qualquer momento, porém não como objeto de sacrifício religioso. O conceito, para Agamben, é espécie de metáfora da cidadania contemporânea.
Autor: Giorgio Agamben
Editora: Boitempo
Preço: R$ 25,90 (157 págs.)