Guia de Leitura

Correspondências

14 agosto, 2015 | Por Isabela Gaglianone

Correspondência trocada [ao menos remetida] por escritores da primeira fase do modernismo brasileiro:

A possibilidade de acompanhar a leitura da troca de cartas entre dois escritores é de uma riqueza que ultrapassa a mera curiosidade, o fetichismo sobre suas personalidades, o voyeurismo intelectual – ainda que também as contemple. As cartas pulsam, testemunhas históricas – eternamente – vivas.

Mais do que formas de comunicação à distância, o tempo epistolar abriu possibilidades únicas de desenvolvimento de discussões, interpretações, compartilhamento de ideias literárias, culturais, intelectuais. Compuseram, entremeado à realidade, um universo de ideias, atualizado pela concretização não apenas em palavras, mas em sua sobreposição enquanto respostas a respostas.

 

Renato Caldas, “Fulô do mato”

Câmara Cascudo foi historiador, antropólogo e jornalista, conhecido pelo trabalho que desenvolveu como pesquisador do folclore. Correspondeu-se com Drummond e com Lêdo Ivo e essas cartas são um caso curioso na historiografia de publicação epistolar, pois foram publicadas como prefácios ao livro Fulô do Mato, do poeta matuto Renato Caldas. Este, potiguar muito estimado por Câmara Cascudo, pode publicar, na segunda edição de seu livro, cartas escritas pelo folclorista a Lêdo Ivo e Drummond. As cartas foram transcritas para as edições seguintes da obra e, então, tomadas definitivamente como prefácios.

Através de sua correspondência, Câmara Cascudo pode ser o articulador do movimento modernista no Rio Grande do Norte. Através de suas cartas a memória cultural e literária presentifica-se. Entusiasta da poesia matuta, ele dizia nas cartas sobre o que se produzia em seu estado aos amigos escritores. Ao dissertar sobre o amigo Caldas, ele diz: “Renato é miolo de arueira, não esquecendo ponta de prego que o riscou nem cheiro de flor roçando nas folhas”.

O folclorista foi muito estimado por Mário de Andrade e com ele também se correspondeu durante longo período, cartas que estão reunidas no volume Câmara Cascudo e Mário de Andrade: Cartas, 1924-1944

 

 

"Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira"

“Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira”

As cartas trocadas entre Manuel Bandeira e Mário de Andrade mostram a germinação espontânea das ideias ao longo da comunicação por escrito entre os dois amigos. A numerosa a correspondência foi trocada entre 1922 e 1944 e testemunha aspectos do funcionamento da sociabilidade intelectual e artística no primeiro modernismo brasileiro e de como se deu, entre os dois escritores, um intenso compartilhamento de juízos críticos a respeito de obras literárias em processo de criação. As cartas mostram inclusive confrontos de percepções estéticas e linguísticas entre Mário de Andrade e Manuel Bandeira no debate sobre a elaboração de Macunaíma, particularmente em relação ao capítulo “Carta pras icamiabas”.

Também testemunham um caso interessantíssimo de amizade unicamente epistolar, já que, ao longo de suas vidas, os dois quase não se viram. Nas poucas ocasiões em que estiveram frente a frente, permaneceram “vexados pelo pudor e pelas diferenças de sensibilidade”, como disse Bandeira em 1928. As cartas estão reunidas no volume Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira.

 

 

“A corespondência entre Monteiro Lobato e Lima Barreto”

Monteiro Lobato é comumente considerado avesso ao movimento modernista. Oswald, porém, chamou-o “o Gandhi do Modernismo” e justificava a sua ausência na semana de 1922 como “luta” que “significava a repulsa ao estrangeirismo afobado de Graça Aranha, às decadências lustrais da Europa podre, ao esnobismo social que abria seus salões à Semana”. Mesmo Mário de Andrade, a despeito de suas conhecidas críticas a Lobato, pontuou: “Quanto a dizer que éramos, os de São Paulo, uns antinacionalistas europeizados, creio ser falta de sutileza crítica. É esquecer todo o movimento regionalista aberto justamente em São Paulo e imediatamente antes, pela Revista do Brasil, é esquecer todo o movimento editorial de Monteiro Lobato”.

As cartas trocadas com Lima Barreto tiveram início justamente graças à Revista do Brasil: “A Revista do Brasil deseja ardentemente vê-lo entre os seus colaboradores. Ninhos de medalhões e pérolas, ela clama por gente interessante que dê coisas que caiam no gosto do público. E Lima Barreto, mais do que nenhum outro, possui o segredo de bem ver e melhor dizer, sem nenhuma dessas preocupaçõezinhas de toilette gramatical que inutiliza metade dos nossos autores”. Lima Barreto tornou-se colunista do impresso e correspondeu-se com Lobato até seu falecimento. O livro A correspondência entre Monteiro Lobato e Lima Barreto reúne 42 cartas nas quais os escritores revelam discordâncias sobre questões políticas da época, trocam opiniões sobre a cena artística e literária e comentam-se literariamente.

 

 

“Carlos e Mário – Correspondência”

Carlos Drummond de Andrade também correspondeu-se longamente com Mário de Andrade. Suas cartas foram publicadas no volume Carlos e Mário, bela compilação, com suas mais de 600 páginas. O livro reconstitui um diálogo intenso, a correspondência completa entre os escritores, que se estendeu de 1924 a 1945. O crítico Silviano Santiago, responsável pelas 500 notas elucidativas que acompanham o volume, no prefácio pontua que são textos nos quais a estilização literária “recobre, surrupia, esconde, escamoteia e dramatiza a experiência pessoal”. A correspondência entre os escritores foi primeiro publicada em fragmentos. As duas primeiras cartas escritas por Mário ao jovem poeta mineiro foram reproduzidas no quarto volume da revista literária José, em 1976. A respeito da publicação, Drummond escreveu uma breve nota justificativa: “Publico suas cartas por estar convencido de que elas, como toda a vastíssima correspondência de Mário, transcendem a área da comunicação entre amigos para se caracterizarem como textos de reflexão de grande proveito no debate, jamais esgotado, sobre a aventura criativa”. As cartas são intensas, partilham angústias, expectativas, tanto intelectuais quanto passionais.

Em 1924, Mário escreveu a Drummond: “Você é uma sólida inteligência muito bem mobiliada… À francesa. Com toda a abundância do meu coração eu lhe digo que isso é uma pena. Eu sofro com isso. Carlos, devote-se ao Brasil junto comigo”. Que, por sua vez, desabafou: “Não sou ainda suficientemente brasileiro. Mas, às vezes me pergunto se vale a pena sê-lo. Pessoalmente, acho lastimável essa história de nascer entre paisagens incultas e sob céus pouco civilizados. […] Sabe de uma coisa? Acho o Brasil infecto. Perdoe o desabafo que a você, inteligência clara, não causará escândalo”.

 

 

"Cartas a um jovem escritor"

“Cartas a um jovem escritor”

Entre Mário de Andrade e Fernando Sabino, a correspondência, reunida em Cartas a um Jovem escritor. Remetente: Mário de Andrade. Destinatário: Fernando Sabino, teve início após o lançamento do primeiro livro de Sabino, em 1941, quando ele tinha apenas dezoito anos. Mandou a Mário de Andrade um exemplar e este, como era de seu feitio mesmo no auge de seu prestígio literário, escreveu ao jovem desconhecido sua sincera opinião, não só sobre o livro, mas sobre a grande potencialidade literária que vislumbrou em sua prosa. Após a primeira carta, mais trinta seguiram-se. Nas cartas a Fernando Sabino, o mestre adverte para a necessidade de trabalho, árduo e constante.

Em uma das cartas, diz: “[…] Mas antes exijo que você pense muito seriamente sobre você. Tanto mais que, pelo que seu livro indica como tendências pessoais, o seu caminho na arte é pesado, muito árduo e sem brilho. Você não irá estourar por aí, ganhando a batalha de um golpe só, como um Lins do Rego, uma Raquel de Queiroz. […] Você irá escrevendo, irá escrevendo, se aperfeiçoando, progredindo aos poucos: um belo dia (si você agüentar o tranco) os outros percebem que existe um grande escritor”.

 

 

Tratando-se de cartas escritas por escritores da primeira fase do modernismo brasileiro, não se estranhe o predomínio do nome de Mário de Andrade, cuja produção epistolar foi de efervescência ímpar e encontrou interlocução em escritores, não só nos de sua geração, mas também naqueles ainda em flor, bem como em artistas, músicos, intelectuais – acadêmicos, ou isolados, como no caso da interessante correspondência com o fascinante fazendeiro Pio Lourenço Corrêa.

 

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