Artes Plásticas

Pelas ruas, bares e prostíbulos – A poética expressionista de Hansen Bahia

1 fevereiro, 2013 | Por Isabela Gaglianone

Um autoretrato em xilogravura de Hansen Bahia

“Como é simplista o trabalho dos escrivinhadores de
arte, e mais simples ainda, quando conseguem situar alguém
dentro da linha, desde há muito totalmente encalhada, da
arte-de-moda-universalmente-aceita contemporânea”
(HANSEN, Jornal da Bahia, 1970).

Na alegria pacata da ida Bahia do início da segunda metade do século XX, reduto de tranquila espontaneidade, dos saveiros e dos coqueirais, o artista alemão Karl Heinz Hansen encontrou os motivos de maior inspiração para suas xilogravuras. Marinheiro traumatizado após ter lutado na segunda guerra mundial, veio ao Brasil e aqui descobriu ancoragem propícia ao desenvolvimento de sua poética expressionista. Morou em São Paulo, mas encontrou-se finalmente na Bahia. Viveu em Salvador e, no final da vida, na cidade de São Félix, na Fazenda Santa Bárbara, a qual doou “de porteira fechada” à Fundação Hansen Bahia, inaugurada pouco antes de sua morte, em Cachoeira, cidade distante de São Félix uma ponte de ferro, comprida a largura do rio Paraguaçu. As cidades, defrontadas, tornaram-se as depositárias históricas do artista. Todas as gravuras e matrizes, bem como cartas, objetos pessoais, mobília, foram doados à Fundação e a casa transformou-se em museu, conforme seu desejo testamentado. A identificação com a Bahia foi tamanha que o artista conferiu a si próprio a alcunha: Hansen Bahia. Nome pelo qual ficou artisticamente conhecido e que resume a afinidade entre o florescimento de sua obra e o encontro de temas a ela ditosos; pelas ruas, bares e prostíbulos de Salvador, por suas ladeiras, mas também por entre o folclore baiano e a história brasileira.

Munido da bagagem artística do Expressionismo alemão, Hansen, ao aportar na Bahia, pôde encontrar, naquela cultura e naquele povo, singelo, rústico, espontâneo, os temas que lhe foram caros pelas próximas décadas. Em entrevistas, mais de uma vez afirmou: “Nasci outra vez na Bahia. Minha arte é também outra coisa, mais leve, mais rica. Não gosto de nada que fiz antes”. Sua atenção perambulava a profundidade dramática da realidade brasileira alegorizada no Pelourinho, então recinto de prostitutas, esfarrapados, marinheiros, efemeridades carnais e devaneios alcóolicos. Esses ícones da boemia maltrapilha serviram-lhe como material de inspiração artística. Hansen, na Bahia, deparou-se com uma tragicidade inexplicável, porque imiscuída em cada canto de uma pobreza conformada, colonialmente herdada e ramificada nos confins das bases das estruturas sociais; mesmo os cangaceiros, em suas gravuras, aparecem não em cenas de luta, mas enquanto reunidos em torno de uma viola. A dramaticidade social só é sentida na pele dos escravos, nas representações da série “Navio Negreiro”. Esta, feita a partir do poema homônimo de Castro Alves, carrega toda a aspereza, animalização e violência do tráfego negreiro. As figuras são fortes, mas quase indistinguíveis, simiescas, amontoadas, algemadas. Uma narrativa visual asquerosa porque histórica, contada com a sinceridade que a gravura em madeira pôde imediatamente representar. Cada talho na madeira parece sentir o horror dos porões dos navios negreiros. É interessante analisar por que a técnica da xilogravura foi a que Hansen elegeu prioritariamente para representar a força de seus temas. Em uma entrevista, em 1971, afirmou: “a madeira tem sua própria linguagem”. As cenas que se representa escavando a madeira traço a traço guardam uma brutalidade própria, expressiva, forte, sincera e, por vezes, mesmo irônica; características que fazem com que, nas xilogravuras de Hansen Bahia, tema e técnica falem um a respeito do outro, encontrem-se, confluam-se.

O crítico Giulio Carlo Argan [Arte Moderna], a respeito do expressionismo alemão, diz algo que aplica- se aos trabalhos de Hansen: “(…) o Expressionismo [manifesta] uma atitude volitiva, por vezes até agressiva. (…) coloca o problema da relação concreta com a sociedade e, portanto, da comunicação” (p.227). E prossegue:

“Sendo antes de tudo trabalho, a arte está ligada não à cultura especulativa ou intelectual das classes dirigentes, e sim à cultura prático-operacional das classes trabalhadoras. […] Se o trabalho industrial obedece a leis racionais, o trabalho do artista como momento supremo da cultura do povo é necessariamente não racional. Nasce, pois, da experiência de uma longa práxis, que acabou por se traduzir em atitude moral.

“Assim se explica a importância predominantemente atribuída às artes gráficas, especialmente à xilogravura, mesmo em relação à pintura e à escultura: não se compreende a estrutura da imagem pictórica ou plástica dos expressionistas alemães, a não ser que se procurem suas raízes nas gravuras em madeira. […] a expressão [na xilogravura] não é uma misteriosa mensagem que o artista anuncia profeticamente ao mundo, mas sim comunicação de um homem a outro. Na xilogravura, a imagem é produzida escavando-se uma matéria sólida, que resiste à ação da mão e do ferro […]. A imagem conserva os traços dessas operações manuais, que implicam atos de violência sobre a matéria, na escassez parcimoniosa do signo, na rigidez e angulosidade das linhas, nas marcas visíveis das fibras de madeira” (pp. 238 – 240).

Argan prossegue a análise do expressionismo alemão tratando da principal preocupação temática dos artistas, a polêmica social, em relação à qual tomavam partido da condição dos trabalhadores, homens do povo, renunciando à condição de intelectualidade burguesa. A obra de Hansen Bahia também guarda essa identificação com a vida popular, não, porém, com caráter de denúncia social, mas nela assimilando-se. Ainda que retrate a prostituição, a pobreza, a inadequação social que se esconde nas gargalhadas restritas aos bordéis e ruas que ganham vida à noite, as mostra durante o dia, à luz de quem quer que as queira ver, na plenitude de sua naturalidade. As prostitutas de suas gravuras não têm a crueza carnal subjacente ao funcionalismo de seu trabalho; a deformação expressionista que apresentam tem graça, é debochada, esparramada em sua naturalidade, que é ambígua, porque socialmente esfarrapada apesar de humanamente dimensionada. As gravuras, assim, comunicam um mundo que é despido de moralismo. Ainda que exista uma angústia socialmente partilhada que as penetre, suas cenas são compreendidas no mundo que exibem, nele inseridas. As gravuras ganham uma profundidade humana em tanto irônica; acorrentadas a uma experiência mundana irrefutavelmente árida, mantêm uma subjetividade que, sobre ela, se equilibra.

Em 1957, Hansen produziu o álbum “Flor de São Miguel”, título que alude ao nome de um prostíbulo em Salvador, no Pelourinho. A respeito desse trabalho, disse, numa entrevista:

“Com este livro fiz sucesso no mundo inteiro, ele foi a chave que me abriu todas as portas […]. É tudo puro ali. Meninas de treze anos vivem na prostituição, têm filhos sem pais e continuam crianças. Muitas ainda brincam com bonecas. Outras brigam de faca. Vivo naquele meio, gosto daquela gente. O bar Flor de São Miguel é o meu ponto preferido. Dali observo tudo, colho os motivos de minhas gravuras. Que coisa bonita aquelas mulheres pretas vivendo entre casas velhas e balcões barrocos, é um contraste fabuloso, coisa única no mundo”.

Hansen Bahia, da série “Portas e janelas”

A despeito da possível refutação que acusasse uma ingenuidade do olhar estrangeiro a naturalizar o exótico, existiu uma sincera identificação do artista com aquela pobreza. É esse reconhecimento o que faz com que se perca, em seu trabalho, a dimensão de crítica social ou moral; há uma crítica, porém constitutiva, espelhada e sintetizada enquanto crítica estética. Pois considerando em si mesma a poética expressionista, nota-se que sua brutalidade, aplicada à representação deformada de figuras emblematicamente marginais da sociedade, confere um estatuto crítico à obra; crítica, apesar de nada moralista, estética, da qual é decorrente uma irredutível profundidade semântica. As deformações dos corpos, com braços e pernas retorcidos como se fossem absolutamente maleáveis, por exemplo, tratamento constante em diversas épocas na obra de Hansen Bahia, resguardam a languidez do produto histórico, inerte. De modo que a própria poética é simbólica e fala por si só; a marginalidade que ela desvela é ao mesmo tempo meio em que ela se desenvolve. Walter Benjamin, em “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem”, um texto de sua juventude, definira:

“Aquilo que é comunicável em uma essência espiritual é aquilo no que ela se comunica; o que quer dizer que toda língua se comunica a si mesma. Ou melhor: toda língua se comunica em si mesma; ela é, no sentido mais puro, o meio [Medium] da comunicação” (p.53).

O que leva a pensar que a poética de um artista – desenvolvida quando meio, tema e técnica amalgamam-se e acrescem-se mutuamente – pode ser uma linguagem em si mesma. Hansen foi um desses artistas, capaz de produzir sua própria linguagem. Nas palavras de Jorge Amado, ele “foi ao fundo dos dramas da gente do povo e com uma força comovida os recriou: as mulheres negras nas ruas perdidas não são para Hansen o pitoresco da miséria, são a miséria em meio à beleza” (J. AMADO, “A Bahia de Hansen”). Nas palavras do crítico Mário Pedrosa, “as linhas, os planos, sombra e luz, a textura, o espaço, são tratados em si mesmo, em busca de suas próprias qualidades (…) [para] transmitir a densa mensagem do artista” (M. PEDROSA, “Tribuna da Imprensa”, Rio de Janeiro). Há, em sua obra, uma exata concatenação entre o teor e a maneira como ele é expresso: uma angústia conformada, por isso um tanto niilista, cujo âmago desperta-se no próprio tratamento expressionista.

Segundo Argan, a poética expressionista, “que, no entanto, permanece sempre fundamentalmente idealista, é a primeira poética do feio: o feio, porém, não é senão o belo decaído e degradado. (…) Há, portanto, um duplo movimento: queda e degradação do princípio espiritual ou divino que, fenomenizando-se, une-se ao princípio material; ascensão e sublimação do princípio material para unir-se ao espiritual. Esse conflito ativo determina o dinamismo, a essência dionisíaca, orgiástica e ao mesmo tempo trágica, da imagem e seu duplo significado de sagrado e demoníaco” (p. 240).

E cabe, assim, lembrar também algo que o expressionista belga James Ensor disse: “Trabalhemos com amor, sem temer os defeitos, companheiros habituais e inevitáveis das grandes qualidades. Sim, os defeitos são as qualidades, e o defeito é superior à qualidade. Qualidade significa uniformidade no esforço para atingir certas perfeições comuns, acessíveis a todos. O defeito escapa às perfeições uniformes e banais. O defeito é, pois, múltiplo; ele é a vida e reflete a personalidade, o caráter do artista; humano (…)” (J. Ensor, Mês Ecrits, citado em: CHIPP, Teorias da arte moderna, pp. 108, 109)

Essa profundidade semântica do expressionismo, subjetiva, mas colocada criticamente em relação ao mundo em que se encontra, ultrapassando a experiência humana e dando-lhe uma interpretação própria, é aguda no trabalho de Hansen Bahia, nele composta por um direcionamento significante próprio, poeticamente amadurecido com a gradual mudança no tratamento das figuras.

Em “Portas e janelas”, série realizada em 1968, também acerca dos prostíbulos do Pelourinho, não há ansiedade, nem conformismo, nem certa melancolia que existiam nas cenas da série “Flor de São Miguel”, nas quais as personagens imiscuíam-se aos cenários. Nesta série, enfim tirando os fundos detalhados e reduzindo-os a objetos simbólicos, Hansen conferiu às personagens destaque, personalidade e individualidade. A crônica de um ambiente ou situação coletiva ganhou a subjetividade particular de retratos. E as retratadas guardam certo escárnio, de quem devolve à sociedade satisfação em vez de angústia, revolta ou lamúria. A partir desse movimento artístico, a obra de Hansen ganhou uma expressividade cáustica e também uma diferença significativa em relação a outros artistas modernos. Por exemplo, a respeito de Goeldi, o crítico Rodrigo Naves [Goeldi] diz:

“Os homens que vagam pelas superfícies negras de suas gravuras não têm para onde ir, embora estejam sempre a caminho. São seres urbanos e mantêm com a cidade um contato estreito – partilham a sua ‘cor’, seu anonimato. Apenas uma estreita faixa de luz os separa do ambiente em que se movem. E no entanto nada os acolhe. Curvados, eles precisam atravessar uma atmosfera espessa, que lhes dificulta os movimentos. […] os habitantes das cidades construíram espaços que eles mesmo não reconhecem” ( p.7).

 

As mulheres de Hansen, não. Ainda que sejam fruto do ambiente em que vivem, acostumadas à pobreza e à prostituição, ganham particularidade e trejeitos zombeteiros com o contraste majoritariamente branco do fundo, destacadas dos ambientes, esses, meramente sugeridos. Com a retirada dos fundos, as personagens de Hansen Bahia foram flagradas no que há de mais íntimo de sua individualidade subjetiva. Deixaram de ser parte de uma cena, contextualizada social e historicamente, e ganharam vida própria, malícias, anseios, desejos, desdém, graça.

Há, a partir da retirada dos fundos, um amadurecimento poético notável. As figuras, além de subjetividade e dramaticidade, ganham também naturalidade, autonomia. E o próprio mundo físico passa a ser simbólico: ressoa-se em cada objeto parcial, em cada experiência psíquica dele destacada ou a ele incorporada. Citemos novamente Argan, a respeito do expressionista alemão Edvard Munch, num ponto que Hansen atinge com argúcia:

“O fato realmente importante não é a descrição, inquestionavelmente aguda, de uma situação psicológica; é a concepção extremamente nova do valor, da função do símbolo, que é sempre o signo de uma proibição, de um tabu social, a maneira de significar algo que não pode ser dito em termos claros. […] O símbolo não é algo além da realidade; é algo de morto que se mescla à vida. A sociedade, dizia Ibsen, é como um navio com um cadáver a bordo, e o cadáver é o símbolo-tabu” (p. 258)

A profundidade humana e artística de Hansen Bahia resguarda a aventura filosófica do reconhecimento de tabus que se escondem nas simbologias da experiência mundana e que se calam, recalcados, numa angústia social silenciosa porém freática.

 

__________

*As citações de Hansen foram todas retiradas de três grandes diários nos quais ele e sua esposa, Ilse Hansen, organizaram todo o material divulgado em jornais e catálogos de exposições a respeito de sua obra, recortes que vão desde 1948 até a morte de Ilse, em 1983; as citações de Jorge Amado e Mário Pedrosa foram retiradas dos mesmos diários.

Acessadas graças à colaboração da equipe da Fundação Hansen Bahia, em Cachoeira, e do Museu Casa, em São Félix, BA. Agradeço à equipe pela cooperação atenciosa durante as visitas.

Referências bibliográficas:

. ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Companhia das letras, 1992.
. BENJAMIN, Walter. “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem” in: Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Editora 34, 2011.
. CHIPP, H. B. Teorias da arte moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
. NAVES, Rodrigo. Goeldi. São Paulo: CosacNaify, 1999.

 

Send to Kindle

Comentários