Literatura

Ideologia da natureza

7 julho, 2016 | Por Isabela Gaglianone

gravura de Guillaume Azoulay, “Deux Bison”

Butcher’s Crossing, de John Williams, subverte a imagem romântica do West estadunidense.

Na década de 1870, Will Andrews, um jovem de 23 anos, desiste de Harvard e resolve sair da casa paterna, abandonando o opulento estilo de vida da classe média bostoniana. Viaja, então, para o West, em busca de uma forma mais autêntica de viver, para descobrir na natureza o seu “eu inalterado”. Acaba indo parar em Butcher’s Crossing, um pequeno povoado solitário, perdido na vastidão da pradaria do Kansas, reduto de uma pequena comunidade de negociantes de peles e rudes caçadores de búfalos. Em pouco tempo o protagonista trava amizade com um caçador e os dois, com mais outros dois homens, montam uma expedição de caça a búfalos nas Rochosas do Colorado. A caçada, marcada por desafios físicos extremos – sede, frio, calor, exaustão – e por um isolamento quase total, beira os limites da sobrevivência. Para Will Andrews, debilitado pela fadiga e absorto na contemplação da linda paisagem, a aventura representará uma experiência existencial de amadurecimento que, entretanto, é permeada por características quase oníricas. 

A narrativa do romance não lembra em nada a primeira tradução do autor no Brasil, o aclamado Stoner [Rádio Londres, 2014]. Mas é igualmente soberbo em sua prosa. Como bem define a portuguesa Célia Marteniano, em resenha escrita para o blog de crítica literária Estante de livros: “Tal como Stoner, o romance passou despercebido durante mais de meio século e só agora foi resgatado por um coro invulgarmente unânime de críticos e autores, que viram na obra o antiwestern por excelência, despido de romantismo e eivado de uma crueza visceral”. Para a comentadora, “escrito com a precisão quase maníaca que caracteriza John Williams, a obra é a negação do legado de Ralph Waldo Emerson, cuja epígrafe abre o romance. A natureza que aqui nos deslumbra é apenas a humana”.

Sobre a impactante prosa de John Williams, o jornalista e crítico literário inglês Nicholas Lezard, em resenha publicada em sua coluna, no jornal The Guardian, diz: “Williams, ao reduzir os elementos da história a nada mais que uma grande atenção aos detalhes, produziu algo atemporal e vultoso. E, por meio da impiedosa representação de homens condenados às mais básicas e extremas circunstâncias – sede, frio, calor, exaustão e isolamento, isso sem mencionar a desagradável companhia uns dos outros –, este livro se encaixa perfeitamente na moda contemporânea de entretenimento do tipo ‘manual de sobrevivência’ […]. Logo no início, o leitor aprende tudo sobre a natureza da poeira em um povoado como Butcher’s Crossing; quase chegando ao fim do livro, terá a ideia precisa de como esfolar um búfalo, além da noção de como sobreviver na pradaria… ‘Essa região é muito difícil de lidar, a partir do momento em que você põe os pés aqui; é grande demais, além de vazia’, lê-se perto do fim, mas a região em questão, chegamos a intuir, é aquela em que todos nós estamos.”

Também Adam Foulds, em resenha escrita para o jornal inglês The Spectator, diz que a “novela é prefaciada por duas epígrafes soberbas. A primeira, do ensaio ‘Natureza’, de Emerson, enaltece o tipo de contato espiritual com o mundo natural que o nosso herói está procurando. O segundo, de The confidence man, de Melville, adverte que sua aspiração pode acabar em uma morte congelante nas pradarias. As duas fontes canônicas são indicativas: Williams pretende que sua novela firme-se na tradição americana”. Para Foulds, assim como “muitas outras novelas literárias sobre o West, Butcher’s Crossing tem um elemento forte de alegoria e mito nacional. As partes constituintes do mito são alguma vezes preocupantemente familiares – a assustadora cidade dos dois cavalos, os tipos embrutecidos pelas aventuras, a prostituta enamorada – mas a técnica da escrita vivifica as personagens emblemáticas e dispõe pedaços dos quais a novela é composta. Nas montanhas, as cenas são excepcionalmente vívidas. A sensação de sede, conforme as personagens caminham por dias sem água, a descoberta do vale cheio de búfalos, os dias de matança incessante, como é pelar um búfalo – metade da pele ainda aderindo, montes de carne pendurados do esfarrapado trapo destruído – ou o inverno nevado que atrasa o retorno do grupo por meses, são descrições impossíveis de serem esquecidas”.

 

John Williams foi professor de literatura em Missouri. Como escritor, tornou-se conhecido por sua forma de narrar, peculiar pela força que confere aos pequenos dramas e ao cotidiano das resignações e decepções humanas.

Butcher’s Crossing foi seu segundo romance, publicado originalmente em 1960.

 

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Trecho:

 

Aos poucos, a manada, em seus rodeios, foi-se afastando deles. Os animais se moveram, e os dois homens rastejaram atrás, alguns metros a cada avanço, mantendo a mesma posição em relação ao círculo dos búfalos. Por alguns minutos, fora da grande nuvem de fumaça de pólvora queimada, conseguiram respirar normalmente, mas logo outra bruma se formou e eles tornaram a arfar e tossir.

Depois de um tempo, Andrews começou a perceber que havia um ritmo naquela matança. Primeiro, com um movimento calculadamente lento de contração dos músculos do braço, equilíbrio da cabeça e um lento aperto da mão, Miller disparava. Então, rapidamente ejetava o cartucho fumegante e recarregava. Analisava o animal atingido e, quando via que estava realmente atingido, seus olhos procuravam em meio à manada circundante um búfalo que parecesse particularmente irrequieto. Após alguns segundos, o animal ferido cambaleava e desabava no chão, e Miller atirava outra vez. A coisa toda pareceu a Andrews uma dança, um estrondoso minueto criado pela vida selvagem à sua volta.

A certa altura durante a matança, várias horas depois de Miller ter abatido o primeiro búfalo, Schneider rastejou por trás deles e chamou pelo nome de Miller. Miller não fez menção de ter ouvido. Schneider tornou a chamar, mais alto dessa vez, e Miller virou um pouco a cabeça, mas continuou sem responder.

“Já chega”, disse Schneider. “Você já matou setenta ou oitenta. É mais que o bastante para o senhor Andrews e eu trabalharmos até a meia-noite.”

“Nada disso”, retrucou Miller.

“Você já matou muito por hoje”, insistiu Schneider. “Está bom. Não precisa…”

A mão de Miller se contraiu, e um tiro soou como estrondo acima das palavras de Schneider.

“O senhor Andrews aqui não será de muita utilidade, você sabe disso”, argumentou Schneider depois de os ecos do disparo haverem passado. “Não adianta continuar atirando se não conseguirmos dar conta de tirar a pele.”

“Vamos esfolar tudo que for baleado, Fred”, disse Miller. “Mesmo que eu fique aqui atirando até amanhã.”

“Inferno!”, bravejou Schneider. “Eu é que não vou esfolar búfalo duro.”

Miller recarregou o rifle e voltou a posicioná-lo na forquilha. “Se for necessário, eu ajudo a esfolar. Mas, com ou sem ajuda, você vai esfolar todos esses búfalos, Fred. Quente ou frio, mole ou duro. Inchados ou congelados. Nem que você tenha que usar um pé de cabra para soltar a pele. Agora, cale essa boca e vá embora daqui; você vai me fazer errar o tiro.”

“Inferno!”, repetiu Schneider. Socou a terra com o punho cerrado. “Está bem”, concordou ele, levantando-se até ficar somente agachado. “Fique aí o tempo que quiser. Mas eu não vou…”

“Fred”, chamou Miller baixinho, “quando rastejar para longe daqui, rasteje calado. Se você espantar esses búfalos, eu atiro em você”.

Por um momento, Schneider continuou agachado. Então, balançou a cabeça, ajoelhou-se e rastejou para longe dos dois homens em linha reta, resmungando para si mesmo. A mão de Miller se contraiu, o dedo apertou o gatilho e um tiro explodiu naquela quietude retumbante.

Só no meio da tarde a matança foi interrompida

A manada original havia sido reduzida em dois terços ou mais. Por um longo trecho irregular que se estendia por mais um quilômetro além da manada, o chão estava juncado de montes escuros de búfalos mortos.

Os joelhos de Andrews ralaram de tanto rastejar atrás de Miller, que continuava avançando, metro após metro, lentamente, em direção ao sul, perseguindo a manada, que se movia em círculos. Seus olhos ardiam de tanto piscar na fumaça de pólvora, e seus pulmões doíam de tanto respirá-la; sua cabeça latejava com o estrondo dos tiros e, na palma de uma mão, começavam a se formar bolhas do contato com os canos fumegantes dos rifles. Na última hora, cerrara os dentes para não expressar a dor que seu corpo sentia.

Mas, enquanto a dor do corpo crescia, sua mente parecia ignorá-la, erguendo-se acima dela, de modo que ele conseguiu enxergar a si mesmo e a Miller com mais clareza do que antes. Na última hora da matança, passara a ver Miller como um mecanismo, um autômato, movido pelos movimentos da manada, e a interpretar sua fúria destrutiva não como desejo de sangue ou cobiça pelas peles ou por aquilo que pudessem trazer, nem mesmo como expressão da raiva que ele trazia no fundo do coração, mas como uma reação fria e desmesurada à vida na qual Miller estava imerso. E ele olhou para si mesmo, rastejando como um tolo atrás de Miller no leito plano do vale, recolhendo os cartuchos vazios que ele gastava, levando o tonel de água, cuidando do rifle, limpando, oferecendo-o a Miller quando ele precisava –ele olhou para si mesmo e não soube mais quem era nem para onde estava indo.

O rifle de Miller disparou novamente. Uma búfala nova, pouco mais que uma novilha, tombou, tornou a se levantar e correu erraticamente para fora do círculo da manada.

“Maldita”, disse Miller sem emoção. “Na pata. É o que basta.”

Enquanto falava, recarregou e atirou outra vez nessa búfala ferida, mas já era tarde demais. No segundo tiro, a búfala fugiu para junto dos búfalos que rodeavam a manada. Rompido o círculo, a manada inteira parou e ficou assim por um instante. Então, um macho jovem saiu correndo, e a manada correu atrás, a massa de animais em disparada brotou de dentro do próprio círculo, como se fosse água da fonte, até que Miller e Andrews só conseguiam ver o fluxo da linha escura das gibas corcoveando para longe deles pelo leito serpenteante do vale.

Os dois homens se aprumaram. Andrews alongou seus músculos encurtados e quase gritou de dor ao alongar as costas.

“Foi só eu pensar”, murmurou Miller, não se dirigindo a Andrews, mas à manada que se dispersava. “Foi só eu pensar no que faria se errasse um tiro. E em seguida errei o tiro. Quebrei uma pata. Se eu não tivesse pensado nisso, teria matado a manada inteirinha.” Ele se virou para Andrews, seus olhos esgazeados e vazios, as pupilas sem foco e dançando no fundo dos brancos. A pele do rosto estava negra das cinzas de pólvora queimada, e a barba estava grossa, emplastrada do mesmo negror. “A manada inteirinha”, repetiu ele. Seus olhos se concentraram em Andrews e ele sorriu brevemente com os cantos da boca.

“Foi uma grande matança?”, perguntou Will Andrews.

“Nunca tive maior”, respondeu Miller. “Vamos contar.”

 

[trecho divulgado pelo jornal Folha de São Paulo, publicado no caderno Ilustríssima, em 06 de março de 2016]

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BUTCHER’S CROSSING

Autor: John Williams
Editora: Rádio Londres
Preço: R$ 47,60 (336 págs.)

 

 

 

 

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