O romance Moll Flanders foi escrito em 1722, no auge do reconhecimento literário do escritor inglês Daniel Defoe. O seu título original ocupava toda a capa da edição, um traçado de todo o destino da protagonista: “As Venturas e Desventuras da Famosa Moll Flanders, que Nasceu na Prisão de Newgate, e ao Longo de uma Vida de Contínuas Peripécias, que Durou Três Vintenas de Anos, sem Considerarmos sua Infância, Foi por Doze Anos Prostituta, por Doze Anos Ladra, Casou-se Cinco Vezes (Uma das Quais com o Próprio Irmão), Foi Deportada por Oito Anos para a Virgínia e, Enfim, Enriqueceu, Viveu Honestamente e Morreu como Penitente”.
Assim, o romance segue a vida de uma mulher que nasceu na prisão e atravessou agruras até morrer, rica, como penitente – narrado por ela mesma, como suas memórias. Trata-se de umas das mais fascinantes personagens femininas da literatura universal. A edição brasileira, recentemente lançada pela Cosac Naify para inaugurar sua coleção “Nova Prosa do Mundo”, foi traduzida por Donaldson M. Garschagen e conta com textos de Cesare Pavese, Marcel Schwob e Virginia Woolf.
A obra é construída sobre claras noções sociais, como o papel das mulheres na sociedade machista, a problemática acerca do desejo de ascensão econômica e busca indiscriminada por dinheiro para a própria sobrevivência. É, portanto, considerada uma obra de cunho crítico capitalista. Porém, o tom da prosa de Defoe também a torna uma novela picaresca que versa sobre questões morais, explorando tanto as ideologias conservadoras como as liberais do século XVIII. Todas as questões são mostradas enquanto permeadas pela experiência individual envolvente da protagonista.
Ian Watt, no clássico estudo A ascensão do romance, analisa: “A heroína é uma criminosa, mas a alta criminalidade em nossa civilização deve-se principalmente à ampla difusão de uma ideologia individualista numa sociedade em que nem todos podem obter sucesso. Como Rastignac e Julien Sorel, Moll Flanders é um produto característico do individualismo moderno na medida em que se julga na obrigação e no direito de obter as maiores recompensas econômicas e sociais e para tanto lança mão de todos os recursos disponíveis”. Por outro lado, entretanto, Defoe “apresenta meretrizes, piratas, salteadores, ladrões e aventureiros como pessoas comuns, produtos normais do meio em que vivem, vítimas de circunstâncias que qualquer um poderia ter experimentado e que suscitam exatamente os mesmos conflitos morais entre fins e meios com os quais se defrontam outros membros da sociedade”.
Raquel Cozer, em artigo publicado em sua coluna no jornal Folha de São Paulo, diz que Virginia Woolf, “um século atrás, atentou para uma qualidade para além do humor que perpassa o romance. O autor, para ela, verbalizou com o livro ‘algumas doutrinas muito modernas’ no que diz respeito ao papel da mulher na sociedade. ‘Desde o começo é posto sobre ela o ônus de provar seu direito de existir. Ela depende totalmente de sua própria inteligência e raciocínio para enfrentar cada situação que surge’, escreveu, em 1919, a futura autora de ‘Mrs. Dalloway’ (1925)”. Segundo a jornalista: “[…] Comerciante por quase toda a vida e romancista tardio, além de jornalista, Defoe deixou ensaios que evidenciavam posições progressistas. Num deles, ‘Sobre a Educação das Mulheres’, escreveu: ‘Tenho pensado com frequência que é um dos mais bárbaros costumes do mundo […] negarmos às mulheres as vantagens da instrução’”. A análise de Cozer prossegue, mostrado que essa posição “não está explicitada em ‘Moll Flanders’, mas transparece no livro. A certa altura, a personagem se depara com uma jovem rejeitada pelo pretendente quando ele descobre que ela andara investigando seu passado. ‘Como todas as vantagens estavam, infelizmente, do lado dos homens, descobri que a mulher perdera o direito de dizer não; agora a mulher via um pedido de casamento como um favor, e se alguma jovem tivesse a soberba de opor uma negativa, nunca mais teria oportunidade de fazê-lo pela segunda vez’, constata a protagonista do livro”. Porém, em relação à visão de Virginia Woolf sobre o feminismo do romance, Cozer cita a professora de literatura inglesa e literatura comparada da USP, Sandra Vasconcelos, para quem: “Defoe não poderia levar a história além do que levou, não existia a possibilidade da mulher totalmente livre, então ela se penitencia”.
A Cosac Naify disponibiliza um trecho para visualização.
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Trecho de “Defoe”, escrito por Virginia Woolf em 1919:
[…] Os defensores dos direitos das mulheres talvez pouco se importassem em incluir Moll Flanders e Roxana* entre suas padroeiras; entretanto, fica claro que Defoe não só pretendia que elas verbalizassem algumas doutrinas muito modernas sobre o assunto, como também as pôs em circunstâncias onde seus peculiares padecimentos são expostos de modo a conquistar nossa simpatia. Moll Flanders disse que era de coragem, e de força para ‘impor seus direitos’, que as mulheres precisavam; e de imediato ela deu demonstração prática dos benefícios que disso resultariam.
Roxana, dama da mesma profissão, argumenta com maior sutileza contra a escravidão do casamento. Ela ‘começara uma coisa nova’, disse-lhe o comerciante; ‘era um modo de argumentar contrário à prática estabelecida’. Mas o último escritor a ser culpado de pregação escancarada é Defoe. Roxana prende nossa atenção porque felizmente ela não tem consciência de ser um exemplo para seu sexo, em qualquer bom sentido que seja, e assim é livre para reconhecer que essa parte de sua argumentação é ‘de um tipo elevado que a principio realmente nem me passou pela cabeça ‘. O conhecimento de suas próprias fraquezas e o questionamento sincero de seus motivos, que esse conhecimento engendra, têm por feliz resultado mantê-la humana e viva, enquanto os mártires e pioneiros de tantos romances problemáticos se encolheram e encarquilharam nos cabides e apoios dos seus respectivos credos.
Mas o direito de Defoe à nossa admiração não reside apenas no fato de podermos mostrar como ele antecipou algumas das visões de Meredith, ou de ele haver escrito cenas que (pode ocorrer estranhamente a alguém) poderiam ter sido transformadas em pe.as de Ibsen. Suas ideias sobre a situação das mulheres, quaisquer que sejam, são decorrência incidental de sua maior virtude, que . a de lidar com o lado importante e duradouro das coisas, não com o trivial e efêmero […]
[Trecho divulgado pelo blog da editora]
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Autor: Daniel Defoe
Editora: Cosac Naify
Preço: R$ 41,93 (510 págs.)