“Cedo compreendi que o bom fraseado não é o fraseado redondo, mas aquele em que cada palavra está no seu lugar exato e cada palavra tem uma função precisa, de caráter intelectivo ou puramente musical, e não serve senão a palavra cujos fonemas fazem vibrar cada parcela da frase por suas ressonâncias anteriores e posteriores. Não sei se estou sutilizando demais, mas é tão difícil explicar porque num desenho ou num verso esta linha é viva, aquela é morta.” – Manuel Bandeira
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A conhecida autobiografia de Manuel Bandeira, Itinerário de Pasárgada, foi publicada pela primeira vez em 1954. Então com 68 anos de idade e poeta já consagrado, Bandeira revisita seu refúgio onírico, a famosa Pasárgada que o acompanhou durante a vida desde seus dezesseis anos, quando descobriu o nome desta pequena cidade, nas montanhas da Pérsia, fundada por Ciro.
“Vou-me embora pra Pasárgada”, escrevera em 1930, batizando o notório poema publicado em Libertinagem; símbolo de evasão, de “toda a vida que podia ter sido e que não foi”, Pasárgada acabou por se tornar uma identificação do itinerário da própria busca literária do poeta.
O livro, dedicado a Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e João Condé que, segundo o poeta, o fizeram escrevê-lo, traça o roteiro da construção da poética de Bandeira, da consciência de suas limitações ao cuidadoso consequente trabalho da formação de sua técnica própria. Logo no início do Itinerário, o poeta confessa a dificuldade em lembrar-se com clareza do período de sua internação por graves problemas pulmonares, de 1904 até 1917, ano em que publicou seu primeiro livro de versos, A cinza das horas. “Foi nesses treze anos que tomei consciência de minhas limitações, nesses treze anos que formei minha técnica”, ele conta. “Tomei consciência de minhas limitações. Instruído pelos fracassos, aprendi, ao cabo de tantos anos, que jamais poderia construir um poema à maneira de Valéry. Em ‘Mémoires d’un poème’ (Variété V) confiou-nos o grande poeta que a primeira condição que ele impunha no trabalho de criação poética era ‘le plus de conscience possible’ [‘o máximo de consciência possível’]; todo o seu desejo era ‘essayer de retrouver avec volonté de conscience quelques résultats analogues aux résultats intéressants ou utilisables que nous livre (entre cent mille coups quelconques) le hasard mental’ [‘tentar encontrar, com empenho da consciência, alguns resultados análogos aos resultados interessantes ou utilizáveis que nos oferece (entre cem mil tentativas aleatórias) o acaso mental’]. Anteriormente chegara ele a dizer que preferia ‘avoir composé une oeuvre médiocre en toute lucidité qu’un chef-d’oeuvre à éclairs, dans un état de transe…’ [‘ter composto uma obra medíocre em total lucidez do que uma obra-prima num estado de transe…’]. Na minha experiência pessoal fui verificando que o meu esforço consciente só resultava em insatisfação, ao passo que o que me saía do subconsciente, numa espécie de transe ou assombramento, tinha ao menos a virtude de me deixar aliviado de minhas angústias. Longe de me sentir humilhado, rejubilava, como se de repente me tivessem posto em estado de graça. […] Tomei consciência de que era um poeta menor; que me estaria para sempre fechado o mundo das grandes abstrações generosas; que não havia em mim aquela espécie de cadinho onde, pelo calor do sentimento, as emoções morais se transmudam em emoções estéticas: o metal precioso eu teria que sacá-lo a duras penas, ou melhor, a duras esperas, do pobre minério das minhas pequenas dores e ainda menores alegrias.
Mas ao mesmo tempo compreendi, ainda antes de conhecer a lição de Mallarmé, que em literatura a poesia está nas palavras, se faz com palavras e não com ideias e sentimentos, muito embora, bem entendido, seja pela força do sentimento ou pela tensão do espírito que acodem ao poeta as combinações de palavras onde há carga de poesia”.
O poeta conta ainda que realizando cotejos entre versos percebeu “que a poesia é feita de pequeninos nadas”; em meio ao estudo que realizava com tais cotejos, pontua: “Devo dizer que aprendi muito com os maus poetas. Neles, mais do que nos bons, se acusa o que devemos evitar. Não é que os defeitos que abundam nos maus não apareçam nos bons. Aparecem sim. Há poemas perfeitos, não há poetas perfeitos. Mas nos melhores poetas certos versos defeituosos passam muitas vezes despercebidos. Bilac foi sem dúvida um belo artista. Sem embargo, não é verdade que os doi primeiros versos do ‘Julgamento de Frineia’ lhe saíram muito desgraciosamente pesados por causa de quatro adjetivos, colocados em posição homóloga, dois num verso, dois no outro, sendo que os primeiros graves, os segundos esdrúxulos? […] Mas não foi em Bilac, foi em pós-parnasianos de segunda ordem que atentei nesse trambolho e aprendi a evitá-lo”.
Carlos Newton Júnior, crítico literário, poeta e ensaísta, responsável pelo estabelecimento do texto, na apresentação ao volume pontua que, “revelando as intenções implícitas em muitos dos seus versos e as contingências que o levaram a escrevê-los, Bandeira, que vivenciou momentos decisivos da afirmação do nosso modernismo, termina por apresentar, no Itinerário, não só as etapas de formação de sua própria poética, mas um testemunho vivo de todo ambiente intelectual e artístico do seu tempo, testemunho dos mais importantes para a história da literatura”. Newton Júnior ressalta, “para o leitor que se depara com o Itinerário pela primeira vez, que estamos tratando de uma autobiografia poética. Homem discretíssimo nas suas relações pessoais e sobretudo amorosas, Bandeira não menciona fatos de sua vida que pudessem vir a comprometer, de algum modo, a sua privacidade. Os fatos são revelados na medida em que possuem alguma relevância para a construção da sua obra e na exata proporção em que reverberam nos poemas”. Para o crítico, este itinerário poético é, em referência à Vida nova de Dante Alighieri, a quem Bandeira reverenciava como grande poeta, “a ‘Vida Nova’ de Manuel Bandeira: impossibilitado de levar uma existência normal, uma vez que descobriu possuir, nos pulmões, ‘lesões teoricamente incompatíveis com a vida’ (como diagnosticou seu médico, no sanatório de Chavadel), ele termina encontrando para si uma outra vida, vida que pôde ter sido e que de fato foi, e é essa vida nova, a vida na poesia, que é aqui narrada em toda sua plenitude”.
A auto-narrativa de Bandeira é espontânea, uma prosa cadenciada como conversa. Em uma carta de 23 de setembro de 1954, Murilo Mendes escreveu, de Bruxelas, ao amigo, por ocasião da leitura do Itinerário:
“Querido Manuel,
Foi para nós um prazer não muito comum a leitura de ‘Itinerário de Pasárgada’ e ‘De poetas e de poesias’, cuja oferta vivamente lhe agradecemos. Porque o depoimento de um poeta e de um homem do seu estofo, sobre sua própria formação e seu conceito de poesia, não poderia deixar de ser dos mais significativos. De fato o é. Se há um defeito em ‘Itinerário de Pasárgada’, é o de ser muito curto. Gostaríamos que você ainda contasse mais coisas, que, bem sei [rasura] tem a contar”.
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.Trecho.
“Vou-me Embora pra Pasárgada” foi o poema de mais longa gestação em toda a minha obra. Vi pela primeira vez esse nome de Pasárgada quando tinha os meus dezesseis anos e foi num autor grego. Estava certo de ter sido em Xenofonte, mas já vasculhei duas ou três vezes a Ciropedia e não encontrei a passagem. O douto Frei Damião Berge Informou-me que Estrabão e Arriano, autores que nunca li, falam na famosa cidade fundada por Ciro, o antigo, no local preciso em que vencera a Astíages. Ficava a sueste de Persépolis. Esse nome de Pasárgada, que significa “campo dos persas” ou “tesouro dos persas” suscitou na imaginação uma paisagem fabulosa, um país de delícias como o “L’Invitation au Voyage” de Baudelaire. Mais de vinte anos quando eu morava só na minha casa da Rua do Curvelo, num momento de fundo desânimo, da mais aguda sensação de tudo o que eu não tinha feito na minha vida por motivo da doença, saltou-me de súbito do subconsciente esse grito estapafúrdio: “Vou-me Embora pra Pasárgada!” Senti na redondilha a primeira célula de um poema, e tentei realizá-lo mas fracassei. Abandonei a idéia. Alguns anos depois, em idênticas circunstâncias de desalento e tédio, me ocorreu o mesmo desabafo de evasão da “vida besta”. Desta vez o poema saiu sem esforço, como se já estivesse pronto dentro de mim. Gosto desse poema porque vejo nele, em escorço, toda a minha vida; e também porque parece que nele soube transmitir a tantas outras pessoas a visão e promessa da minha adolescência – essa Pasárgada onde podemos viver pelo sonho o que a vida madrasta não nos quis dar. Não sou arquiteto, como meu pai desejava, não fiz nenhuma casa, mas reconstruí, e “não como forma imperfeita neste mundo de aparências”, uma cidade ilustre, que hoje não é mais a Pasárgada de Ciro e sim a “minha” Pasárgada.
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Autor: Manuel Bandeira
Editora: Global
Preço: R$ 39,20 (184 págs.)