matraca

Kaari rõ ure etoa: Na floresta se encontra nossa morada

11 janeiro, 2017 | Por Isabela Gaglianone

“Um cuidado que partilham todos os índios: afirmar e preservar sem cessar sua humanidade com relação ao mundo natural, velar com constância em não se deixar engolir pela selvageria da natureza, sempre à espreita dos humanos que tenta absorver” – Pierre Clastres, 1972.

Índio Aché do Paraguai

Crônica dos índios Guayaki – O que sabem os Aché, caçadores nômades do Paraguai, do etnólogo francês Pierre Clastres, é  resultado do trabalho de campo realizado pelo autor em 1963 e relata o cotidiano dos Guayakis – que se autodenominam Achés. Apesar da provocação da palavra “crônica” no título, o texto foi concebido como monografia e publicado em 1972 – o antropólogo Márcio Goldman, no artigo “Pierre Clastres ou uma antropologia contra o Estado” comenta que o inusitado vocábuloparece assinalar a intenção consciente de abrir mão de toda veleidade cientificista que consistiria em pretender ‘explicar’ os Guayaki”. Goldman ainda pontua quão inusitado era, à época, “colocar no mesmo sintagma os termos saber e caçadores nômades.

De acordo com Eduardo Viveiros de Castro, o livro é testemunho da “história de um tempo vivido com os Aché, quando estes ainda oscilavam entre a liberdade originária e a servidão genocida: mas história sobretudo, do tempo vivido pelos Aché, com alegria e desespero, entre o nascimento e a morte”.

Esta pesquisa etnográfica foi fundamental para o desenvolvimento da obra do autor por ter-lhe fornecido embasamento empírico para as construções de teorias mais amplas sobre as sociedades ameríndias, suas relações com a violência, suas concepções sobre seu Estado. Os dois grupos caçadores nômades do Paraguai observados na pesquisa de campo, buscando fugir da violência dos beeru (brancos), estabeleceram-se em Arroyo Moroti, terra de um branco que buscava passar a imagem de protetor dos índios para receber benefícios do governo.

Eliane Knorr de Carvalho, Nu-Sol, pesquisadora da PUC-SP, no artigo “Canibalismo e antropofagia: do consumo à sociabilidade”, analisa o canibalismo e aponta os Guayaki (ou Aché), os Yanomâmi e os Wari’ como praticantes antropofagia funerária: “Estes rituais tinham em comum o fato de serem grandes cerimônias coletivas em que se deveria convidar até aqueles que estavam espacialmente distantes. A carne só era ingerida com algum vegetal e existia sempre alguém a quem ela era proibida. Segundo Pierre Clastres (1995), que realizou pesquisa entre os Guayaki no Paraguai, na década de 1960, estes índios relataram que nos rituais carne era proibida para os parentes próximos aos quais o sexo também o era. Somente aqueles cuja relação não era permeada pela interdição do incesto é que poderiam comer a carne de Aché. Quando um morria, seu corpo era assado no moquém com palmito e os ossos eram quebrados ou queimados e jogados fora”. Carvalho também comenta a quase completa extinção das práticas antropofágicas, bem como dos povos que a praticavam, como os Tupinambá , quase desapareceram junto com elas; ela cita Pierre Clastres, segundo quem “a reputação de antropofagia era rapidamente adquirida nos séculos XVI e XVII e a lista das populações canibais se estendia à proporção da necessidade de escravos colonos”.

De acordo com Tatiana Amaral Sanches Ferreira, no artigo “A antropologia política de Pierre Clastres em Crônicas dos índios Guayaki: o que sabem os Aché, caçadores nômades do Paraguai”, publicado na Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCar, a pesquisa de campo de Clastres forneceu-lhe fundamentos para suas posteriores análises sobre a sociedade sem Estado. Ferreira indica a motivação inicial da pesquisa de Clastres: Em 1962, quando ainda era um estudante de filosofia, Clastres escreve ‘Troca e poder: filosofia da chefia indígena’, texto que busca delinear a imagem do chefe indígena típico. Como ainda não havia feito trabalho de campo, o autor busca apoiar sua teoria sobre a filosofia de poder indígena nos dados etnográficos disponíveis na época a respeito dos povos das terras baixas da América do Sul – que no início da década de 1960 não eram nada abundantes. Com o fim de analisar esse tipo de chefe detentor de um ‘poder’ praticamente impotente […], o autor recorre às três propriedades do chefe índio analisadas por Lowie. O chefe é um ‘fazedor de paz’ por excelência: é ele quem apazigua os possíveis conflitos que podem colocar em risco o seu grupo; o chefe deve ser generoso com seus bens: portanto, longe de ser alguém que manda seus subordinados trabalharem para poder gozar do ócio, é o chefe quem tem que trabalhar mais na comunidade, já que seu prestígio depende da sua generosidade; e somente um bom orador pode ser digno de ser chefe. Aos três pontos indicados por Lowie, Clastres inclui um quarto: é o chefe que possui o privilégio da poliginia, ou seja, a ele é dado o direito de possuir mais de uma mulher. Essa desigualdade da troca faz o chefe tornar-se um grande devedor em relação à sociedade, o que faz com que seu poder esteja fadado a ser impotente, a ser um poder que não é poder coercitivo ou repressivo”.

Segundo Ferreira, o trabalho de campo entre os Guayaki, realizado um ano após a publicação de seu texto de cunho filosófico sobre a chefia indígena, permitiu que Clastres observasse “diretamente o funcionamento da instituição política dos índios. Não obstante, um fato etnográfico faz com que o chefe dos Aché Gatu não se encaixe plenamente nas quatro características do chefe indígena definidas por Pierre Clastres: Jyvukugi, longe de possuir mais de uma mulher, tinha que dividir a sua com outro membro de seu grupo. Tal fato não invalida a teoria da filosofia indígena clastriana, por dois motivos: primeiramente, o retrato que o autor fornece do chefe indígena pode ser considerado um tipo ideal – não um conjunto de características que deve ser encontrado tal e qual em uma realidade empírica. Em segundo lugar, a demografia Guayaki tinha uma conformação atípica: havia mais homens que mulheres – por isso, para que todos os homens pudessem possuir uma esposa, era necessário que aceitassem que elas tivessem mais de um marido. Ao longo do livro, é revelado o motivo do déficit feminino: sempre que um homem vigoroso morria, ele tinha o direito à reparação, à vingança. O morto desejava abolir a solidão: queria alguém para fazer companhia na viagem à morada dos mortos, a prana wachu (uma grande savana). Geralmente, matava-se um de seus filhos, quase sempre, uma filha”. A observação do chefe dos Guayaki confirma a interpretação filosófica da chefia indígena formulada por Clastres em um ponto fundamental dessa teoria; conforme Ferreira sintetiza: “a ideia de que a instituição política dos índios opõe radicalmente o poder e a violência, o prestígio e a coerção. Jyvukugi, diferentemente do beeru paraguaio, não exercia sua autoridade por meio da coerção, muito pelo contrário, sua autoridade de chefe se demonstrava pelo oposto da violência: a palavra”.

Márcio Goldman, no supracitado artigo, analisa a relevância de Clastres, cuja obra antecipou temas da antropologia moderna ou pós-moderna, falando em diálogo, em humor e em saberes. E aponta que especificamente “sua escolha em denominar ‘crônica’ seu livro sobre os Guayaki também antecipa temas contemporâneos”. Para mostrá-lo, Goldman evoca a obra, que em sua leitura é repleta de ressonâncias clastrianas, de Chinua Achebe, “nascido em uma dessas sociedades contra o Estado que também pululam no continente africano, os Ibo da Nigéria oriental”. Achebe, no livro Home and Exile, [New York, Anchor Books, 2000], “recorda como os professores britânicos faziam com que os jovens estudantes universitários africanos lessem a literatura europeia. Condescendentemente, incluíam um ou outro livro, também europeu, é claro, que falava da ‘África’ – e estes eram os que mais irritavam os estudantes. […] Achebe conta que foi a leitura de um desses livros que o obrigou a deixar de lado sua ‘suposição infantil acerca da inocência das estórias’ e o convenceu de que é tão importante para um povo ter o controle de suas estórias (stories) quanto de sua história (history)’”, pois, conclui o autor africano, “embora a ficção seja indubitavelmente fictícia, ela também pode ser verdadeira ou falsa, não com a verdade ou a falsidade de um noticiário, mas em relação a seu desprendimento [disinterestedness], sua intenção, sua integridade”.

A crônica de Clastres foi publicada no Brasil em 1995, pela Editora 34, traduzida por Tânia Stolze Lima e Janice Caiafa. Infelizmente, encontra-se esgotada, disponível apenas em sebos.

 

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.trecho.

 

“Beeru! Ejo! Kromi waave!”, sussurra uma voz a princípio longínqua e confusa, depois dolorosamente próxima, palavras estranhas e contudo compreendidas. Que esforço para subtrair-se em plena noite à felicidade do repouso no calor do fogo vizinho! “Beeru! Ejo! Pichugi memby waave! Nde ro mecha vwa! Homem branco! Venha! O bebê de Pichugi nasceu! Foi você que pediu para ver!” Tudo se aclara bruscamente, eu sei do que se trata. Furor e desalento. De que adianta recomendar-lhes vários dias antes para me chamar logo na aparição dos primeiros sinais, se eles me deixam dormir enquanto se produz o acontecimento! Pois é uma ocorrência atualmente rara na tribo a vinda ao Mundo de uma criança, e eu desejava tanto ver Pichugi parir.

Foi seu irmão Karekyrumbygi, Grande Quati, quem se inclinou sobre mim. As chamas se agitam sobre sua grande face imóvel e nenhuma emoção anima seus traços grosseiros. Ele nao porta o tembetá e pelo furo que divide seu lábio inferior escorre urn delgado filete de saliva brilhante. Vendo que eu ja não durmo, ele se ergue sem uma palavra e desaparece rapidamente na escuridão. Eu me precipito sobre seus passos, esperando que o bebê não tenha nascido há muito tempo e que eu encontre ainda o que satisfazer minha curiosidade etnográfica: talvez de fato eu não tivesse mais ocasião de assistir a um parto entre os Guayaki. Quem sabe que gestos efetuados nesta circunstância, que palavras raras de boas-vindas ao recém-chegado, que ritos de acolhida a um pequeno índio arriscam escapar-me para sempre. Aqui nada poderia substituir a observação direta: nem questionário – por mais preciso que seja-, nem narrativa de informante – qualquer que seja sua fidelidade. Pois é frequentemente sob a inocência de um gesto semi-esboçado, de uma palavra subitamente dita, que se dissimula a singularidade fugitiva do sentido, que se abriga a luz onde todo o resto se aviva. Eis por que eu esperava com tanta impaciência quanto os próprios índios o parto de Pichugi, decidido a não deixar escapar o menor detalhe daquilo que, irredutível ao puro desenrolar biológico, assume imediatamente uma dimensão social. Todo nascimento é vivido dramaticamente pelo grupo como um todo, ele não é a simples adição de um indivíduo suplementar a tal ou qual família, mas uma causa de desequilíbrio entre o mundo dos homens e o universo das potências invisíveis, a subversão de uma ordem que o ritual deve aplicar-se em restabelecer.

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A CRÔNICA DOS ÍNDIOS GUAYAKI

Autor: Pierre Clastres
Editora: 34
Preço mínimo: R$ 35,00 (256 págs.)

[disponível apenas em sebos]

 

 

 

 

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