Askhmata

Recriações da obra de arte

9 janeiro, 2017 | Por Isabela Gaglianone

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Askhmata

Esquemas de percurso, exercícios: ancoragens marcadas em uma carta náutica literária, imaginária. Alheias às exigências profissionais de decoro, desenham memórias de leituras.

 

A nova coluna d’O Benedito inspira-se nos Exercícios [em grego no original, Askhmata], do filósofo inglês Shaftesbury (1671-1713). Na apresentação à cuidadosa edição brasileira, que seleciona alguns textos fundamentais dos cadernos do filósofo, o tradutor e organizador, Pedro Paulo Pimenta, fornece uma explicação que aqui ilumina também nosso princípio:

“A palavra grega que dá título aos cadernos de Shaftesbury, askhmata, além de significar ‘exercícios’, tem outras importantes acepções complementares, que vinham sendo formuladas no pensamento antigo desde Platão e Aristóteles. Para este, como explica Auerbach, o termo schema designa ‘o modelo puramente perceptivo’ das representações, por contraposição a ‘eidolos, ou ideeia, que informa a matéria’. Posteriormente em latim, aduz esse estudioso, ‘forma’ veio a designar eidolos, enquanto ‘figura’ foi reservado para schema. Essa oposição está longe de ser simples. como complemento da exposição de Auerbach, lembremos aqui a explicação de Maria Luisa Catoni, que chama a atenção para o duplo sentido do termo schema ou figura. Por um lado, um esquema é ‘um meio através do qual se reconhece um personagem, real ou representado, numa estátua ou no teatro, é um meio através do qual o naturalista classifica os animais, as plantas, os planetas’. Mas nem toda representação é verdadeira, e esquema se refere também a processos de ‘confraternização e travestimento’ das representações, processos esses típicos de uma sensibilidade ainda fortemente marcada pela natureza animal, despreparada, portanto, para a percepção adequada das representações”.

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Erwin Panofsky, Significado nas artes visuais

[Ed. Perspectiva, tradução de Maria Clara F. Kneese e J. Guinsburg]

 

Dürer, rascunho com “O rapto de Europa”

 

A profunda erudição de Panofsky dá testemunho do humanismo como conceito alargado, processo orgânico, que é o que faz a história da arte. Pois, da compreensão da atitude humanística, ele extrai o âmago do trabalho deste específico historiador: a percepção da relação de significação, ou seja, a capacidade de separar a ideia do conceito a ser expresso de seus meios de expressão: “Os signos e estruturas do homem são registros porque, ou antes na medida em que, expressam ideias separadas dos, no entanto, realizadas pelos, processos de assinalamento e construção. Estes registros têm portanto a qualidade de emergir da corrente do tempo, e é precisamente neste sentido que são estudadas pelo humanista; este é, fundamentalmente, um historiador”.

O historiador de arte “submete seu ‘material’ a uma análise arqueológica racional, por vezes tão meticulosamente exata, extensa e intrincada quanto uma pesquisa de física ou astronomia. Mas ele constitui seu ‘material’ por meio de uma recriação estética intuitiva”. Forma-se uma “situação orgânica” com a interligação entre a recriação estética intuitiva e a pesquisa arqueológica.

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Quando Pico della Mirandola diz que “o homem é a medida de todas as coisas” não quer dizer que  homem seja o centro do universo; mas refere-se à qualidade de humanitas conforme compreendido pelo Renascimento: diferença do bárbaro – um valor – e de Deus – uma limitação.

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A “Dignidade do homem” de que fala seu “Discurso” diz respeito aos valores humanos – racionalidade e liberdade – e à sua limitação – falsidade e fragilidade; de que resultam dois postulados: responsabilidade e tolerância.

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Segundo Panofsky, “a concepção renascentista de humanitas tinha um aspecto duplo desde o princípio. O novo interesse no ser humano baseava-se tanto numa renovação da antítese clássica entre humanitas e  barbaritas ou feritas, quanto na aparição da antítese medieval entre humanitas e divinitas. Quando Marsílio Ficino define o homem como ‘uma alma racional, participando do intelecto de Deus, mas operando num corpo’, define-o como o único ser que é ao mesmo tempo autônomo e finito. E o famoso ‘discurso’ de Pico […] diz que Deus colocou o homem no centro do universo para que pudesse ter consciência de seu lugar e assim ter liberdade para decidir ‘aonde ir’. Não afirma que o homem é o centro do universo, nem mesmo no sentido comumente atribuído à frase clássica, ‘o homem é a medida de todas as coisas’”. O humanismo que nasceu desta concepção, diz nosso autor, não é tanto um movimento quanto uma atitude.

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“O humanismo rejeita a autoridade, mas respeita a tradição”; isso implica em compreender a tradição enquanto algo objetivo, que é necessário estudar. A Idade Média, como analisa Panofksy, teve uma atitude totalmente contrária, “aceitou e desenvolveu mais do que estudou e restaurou a herança do do passado”. Não houve nenhuma tentativa interpretativa, pois a existência humana é, para o medievo, mais um meio que um fim – os registros da atividade humana, pois, não eram considerados valores em si mesmos. Foi um período que “copiou as obras de arte clássicas e usou Aristóteles e Ovídio, do mesmo que copiou e usou as obras dos contemporâneos. Não fez nenhuma tentativa de interpretá-las de um ponto de vista arqueológico, filosófico ou ‘crítico’, em suma, de um ponto de vista histórico”.

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A consideração da existência humana, para a Idade Média, não como um fim em si implica a sua impossibilidade de pensar a história perspectivamente.

[sobre isso, cf. PANOFSKY; F. SAXL, “Classical mythology in Medieval Art”, in: Studies of the Metropolitam Museum, IV, 2, 1933, pp. 228 e ss.]

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A informação mitológica, durante a Idade Média, sobreviveu e tornou-se acessível. Primeiro, através das enciclopédias e dos compêndios de mitografia da Alta Idade Média, no início do séculos XIII. Depois, as figuras da antiga mitologia passaram a ser interpretadas de forma moralista e relacionadas, de modo definitivo, com a fé cristã. Um novo e sumamente importante passo foi dado por Boccaccio. “Na sua Genealogia Deorum, não apenas efetuou um novo levantamento do material, grandemente aumentado desde cerca de 1220, como também tentou, conscientemente, retornar às fontes genuínas da Antiguidade e confrontá-las, cuidadosamente, umas com as outras”. Para Panofsky, este tratado é de suma importância, “assinala o começo de uma atitude crítica ou científica para com a Antiguidade clássica e cabe considerá-la um precursor de tratados verdadeiramente eruditos da Renascença”.

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Como diria Panofsky, por que devemos empenhar-nos em investigações não-práticas e interessar-nos pelo passado? Porque nos interessamos pela realidade.

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A serpente como símbolo do tempo

A serpente mordendo a própria cauda é assim mencionada, e em parte ilustrada como atributo de Saturno, o deus do tempo, nas mitografias de Mythographus III e Petrarca (África, III).

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“Petrarca – o homem que mais que nenhum outro pode ser considerado o responsável pelo que chamamos de Renascença”.

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Sobre a ideia de que um desenho de Cimabue combine com uma moldura gótica que lhe acrescentou Giorgio Vasari:

“Esse postulado – mais histórico que estético – foi, de fato, o princípio básico das Vidas de Vasari, onde arquitetura, pintura e escultura são mostradas, pela primeira vez, desenvolvendo-se pari passu, reduzidas a um mesmo denominador comum. Foi Vasari quem primeiro afirmou que essas três artes eram filhas do mesmo pai, a ‘arte do desenho’, commune padre delle tre arti nostre, architettura, scultura et pittura, pelo que ele não só investe a noção de ‘desenho’ de um halo ontológico (ao qual seus sucessores, como Federico Zuccari e os porta-vozes de várias academias acrescentariam um outro, metafísico) mas também estabeleceram o que tendemos a tomar por certo: a unidade interior do que chamamos artes visuais ou, ainda mais concisamente, Belas-Artes”.

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Dürer foi o primeiro artista do Norte a sentir o “pathos da distância” [ em relação à arte clássica]. “Dos dois lados dos Alpes a arte tornou-se uma questão de contato direto e pessoal entre o homem e o mundo visível”.

[cf. Warburg e suas “fórmulas de pathos“].

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Enquanto o paganismo helênico, conforme refletido na arte clássica, considerava o homem “como uma unidade integral de corpo e alma, o conceito judeu-cristão do homem baseava-se na ideia do ‘pedaço de barro’ forçadamente ou mesmo, miraculosamente, unido à alma imortal. Desse ponto de vista, a admirável fórmula artística que na arte grega e romana expressar a beleza orgânica e as paixões animais, pareciam admissíveis apenas se investidas de um significado mais que orgânico e mais que natural; ou seja, quando tornadas subservientes aos temas bíblicos ou teológicos”. Dessa maneira, a reintegração dos temas clássicos nos motivos clássicos,  característica da Renascença italiana em oposição à Idade Média, “não é somente uma ocorrência humanística como humana. É um elemento muito importante daquilo que Burckhardt e Michelangelo chamavam ‘a descoberta tanto do mundo quanto do homem’”.

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Para a escolha do artista entre as proporções “técnicas” e “objetivas” há três circunstâncias possivelmente constrangedoras: a influência do movimento orgânico, a influência da perspectivação e o cuidado com a impressão visual. “E é a Renascença que, pela primeira vez, não apenas afirma mas formalmente legitima e racionaliza essas três formas de subjetividade”.

“Aqueles que gostam de interpretar os fatos históricos em termos simbólicos podem reconhecer nisso o espírito de uma concepção especificamente ‘moderna’ do mundo que permite ao sujeito se afirmar em relação ao objeto como algo independente e igual; ao passo que a Antiguidade clássica não permitia ainda a formulação explícita desse contraste e que a Idade Média achava que tanto o sujeito como o objeto se submergiam numa unidade superior”.

É compreensível que a teoria das proporções teve sua importância reduzida ao passo que o gênio artístico começou a enfatizar cada vez mais a concepção subjetiva do objeto, preferencialmente mesmo ao próprio objeto.

 

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