Literatura

Lampejos literários

22 janeiro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

camus

Ler os cadernos de juventude de um escritor que veio a ser um dos grandes pilares da literatura do século XX é de um interesse que ultrapassa a mera curiosidade intelectualmente arqueológica ou literariamente genética. É singular a liberdade do manuscrito enquanto cena de escritura – utilizando a expressão de Paul Valéry –, enquanto forma do pensamento bruto exteriorizado como sensibilidade verbal.

Albert Camus ao longo de sua vida inteira cultivou o hábito de escrever em pequenos cadernos algumas reflexões, experimentos literários, anotações dispersas e mesmo trechos que foram depois utilizados integralmente em seus primeiros livros.

A editora Hedra no ano passado publicou no Brasil a primeira tradução da reunião dos cadernos em três volumes. O primeiro deles, que cobre o período de 1935 a 37, intitulado Esperança do mundo, apresenta os apontamentos do jovem escritor em contato consigo mesmo, com suas próprias ideias e posições em relação ao mundo. 

O jornalista Manuel da Costa Pinto – autor de um livro sobre Camus, intitulado Albert Camus – Um elogio do ensaio [1998, Ateliê Editorial], disponível apenas em sebos –, em artigo escrito para a Folha de São Paulo, aponta que a edição brasileira “difere da original na divisão interna. Após a morte de Camus, num acidente de automóvel, foram lançados na França três volumes de seus “Carnets” – cobrindo os períodos 1935-1942, 1942-1951 e 1951-1959. A equipe de tradutores da Hedra desdobrou o primeiro desses volumes em três livros, atribuindo-lhes títulos que foram extraídos de frases contidas nas anotações de Camus. Espera-se, portanto, a publicação das outras duas partes dos “Cadernos””. Costa Pinto sintetiza: “Para os leitores de Camus, surpreende o modo como, ainda muito jovem, em sua Argélia natal (então colônia francesa), ele planificava sua obra tal qual a leríamos depois, com o tema onipresente do “absurdo”, sistematizado no ensaio “O Mito de Sísifo”. E se Camus foi interlocutor do existencialismo de Sartre, uma anotação desses “Cadernos” não deixa dúvida de que, nele, o escritor triunfava sobre o pensador: “Só se pensa por imagens. Se você quiser ser filósofo, escreva romances”.

Além de Esperança do mundo, os outros cadernos publicados no Brasil são: A desmedida na medida (1937 – 39) e A guerra começou, onde está a guerra? (1939 – 42). Os três volumes foram traduzidos por Samara Geske e Raphael Araújo

 

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Trecho:

 

“No mosteiro de São Francisco em Fiesole, um pequeno pátio guarnecido de arcadas, tomado por flores vermelhas, pelo sol e por abelhas amarelas e pretas. Em um canto, um regador verde. Por toda parte, o zunido de moscas. Temperado de calor, o pequeno jardim fumega suavemente. Sentado no chão, eu penso nos franciscanos cujos aposentos vi há pouco, cuja inspiração percebo agora, e sinto realmente que, se eles têm razão, é junto de mim que eles têm razão. Atrás da parede em que me apoio, sei que existe a colina que resvala em direção à cidade e essa dádiva de toda Florença com seus ciprestes. Mas esse esplendor do mundo é como a justificação desses homens. E deposito todo meu orgulho em acreditar que ele também é o meu e o de todos os homens de minha raça – que sabem que uma pobreza extrema encontra sempre o luxo e a riqueza do mundo. Se eles se despem, é por uma vida maior ( e não por uma outra vida). É o único sentido que posso atribuir à palavra “desnudamento”. “Estar nu” conserva sempre um sentido de liberdade física e esse acordo da mão e das flores, esse entendimento amoroso da terra e do homem liberado do humano, ah eu bem que me converteria se essa já não fosse minha religião.

Hoje, me sinto livre em relação ao meu passado e ao que perdi. Só quero esse aperto e esse espaço fechado – esse fervor lúcido e paciente. E como pão quente que se aperta e que se reduz a quase nada, eu quero apenas ter minha vida nas mãos, como aqueles homens que souberam encerrar suas vidas entre flores e colunas. E ainda essas longas noites de trem nas quais se pode falar consigo mesmo e se preparar para viver, de si para si, e a paciência admirável de retomar ideias, apanhá-las em sua fuga, e ainda avançar. Lamber a vida como um torrão doce, moldá-la, afiá-la, amá-la enfim, como se busca a palavra, a imagem, a frase definitiva, aquilo ou aquela que conclui, que detém, com o que se partirá e que fará dali em diante todo o colorido do nosso olhar. Eu bem que poderia parar aí, encontrar finalmente o termo de um ano de vida desenfreada e louca. Essa presença de mim diante de mim mesmo – meu esforço é levá-la até o limite, mantê-la diante de todas as faces de minha vida, mesmo ao preço da solidão, que eu sei agora o quanto é difícil suportar. Não ceder: tudo está ali. Não consentir, não trair. Toda minha violência me ajuda nisso e, no  ponto em que ela me leva, meu amor me reencontra e, com ele, a furiosa paixão de viver que dá sentido aos meus dias.

Sempre que cedemos (que eu cedo) às próprias vaidades, sempre que pensamos e vivemos para “parecer”, nos traímos. Todas as vezes, sempre foi a desgraça de querer parecer que me diminuiu diante do verdadeiro. Não precisamos nos entregar aos outros, mas somente àqueles que amamos. Pois nesse caso não se trata mais de se entregar para parecer, mas somente para oferecer. Quando é necessário, um homem tem muito mais força do que parece. Ir até o limite é saber guardar seu segredo. Eu sofri por ser sozinho, mas, por ter guardado meu segredo, venci o sofrimento de ser sozinho. E hoje não conheço maior glória que viver sozinho e ignorado. Escrever, minha alegria profunda” Consentir ao mundo e ao prazer – mas somente no desnudamento. Eu não queria ser digno de amar a nudez das praias se não soubesse ficar nu diante de mim mesmo. Pela primeira vez, o sentido da palavra felicidade não me parece duvidoso. É um pouco o contrário do que se entende pelo banal “eu sou feliz”.

Certa continuidade no desespero acaba por gerar a alegria. E os mesmos homens que, em San Francesco, vivem diante das flores vermelhas, têm seu aposento o crânio que alimenta suas meditações, com Florença pela janela e a morte sobre a mesa. Em minha opinião, se eu me sinto em um ponto decisivo da minha vida, não é por causa do que adquiri, mas do que perdi. Sinto que tenho uma extrema e profunda força. É graças a ela que devo viver, da maneira como desejo. Se hoje me encontro tão distante de tudo, é porque não tenho outra capacidade além de amar e admirar. Vida com a aparência de lágrimas e sol, vida sem o sal e a pedra quente, vida como eu gosto e desejo, me parece que ao acariciá-la, todas as forças do desespero e do amor se conjugarão.

Hoje não é como uma hesitação entre sim e não. Mas hoje é sim e é não. Não e revolta diante de tudo o que não são lágrimas e e sol. Sim para a minha vida da qual sinto pela primeira vez a promessa por vir. Um ano fervilhante e desordenado que termina e a Itália; a incerteza do futuro, mas a liberdade absoluta diante de meu passado e de mim mesmo. Aí está minha pobreza e única riqueza. É como se eu recomeçasse a partida; nem mais feliz nem mais infeliz. Mas com a consciência de minhas capacidades e, o desprezo de minhas vaidades e essa febre, lúcida, que me lança diante de meu destino”.

 

– Anotação feita em 15 de 09 de 1937.

Fonte: Mariana Rodrigues Festucci Ferreira, pelo blog litura-terra.

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ESPERANÇA DO MUNDO

Autor: Albert Camus
Editora: Hedra
Preço: R$ 22,40 (104 págs.)

 

 

 

 

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