Crítica Literária

LÍSIAS, O céu dos suicidas

24 maio, 2012 | Por Isabela Gaglianone
[Alfaguara, 2012]

[Alfaguara, 2012]

“Penso em coleções o tempo inteiro, dou cursos, ofereço consultoria e escrevo sobre isso. Mas não tenho sequer um conjunto de cartões-postais” (p. 70).

 

É um romance da própria consciência o que o jovem escritor paulistano Ricardo Lísias realiza com O céu dos suicidas. Colocando a si mesmo como autor-narrador-protagonista, ele personifica uma consciência desesperada, que tenta sair de si mundo afora em busca de algo que a unifique e realize, um eu que a resguarde, através da memória. Sempre que volta a si, embate-se com seu eterno futuro do pretérito; entre o que foi e o que poderia ter sido, a contingência do passado negada, sobrecarregada pelos efeitos presentes. Porque é justamente uma lembrança retumbante que transforma o sustentáculo da consciência em uma coleção de cacos: o eu, culpado – pela impotência, pela apatia –, fragmenta-se. 

O livro faz-se, então, não como um fluxo de consciência, pois que essa é partida, esquecida de si ainda que em seu próprio encalço. É um fluxo de memória, em que as lembranças ligam-se umas às outras por relações quase arbitrárias. O leitor sente-se como colocado numa exibição de slides de fotos, espécie de caricatura já ultrapassada de um arquivo de lembranças, impressão que é devida à marcação precisa da duração tipográfica desses retrospectos emocionais; cada pedaço de memória ocupa em torno de uma página e meia e depois mergulha num breve silêncio. A caminhada desorientada da consciência segue as pistas dessas lembranças, mas sempre torna a si mesma. “Desde que meu grande amigo se matou, tenho problemas de memória” (p.39). Assim, Ricardo Lísias constrói uma delicada relação entre história e colecionamento, o colecionamento de lembranças que forma a memória e integra um eu, lhe dá um sentido subjetivo único.

O mote do livro é um suicídio e a promessa de penalidade espiritual que o acompanha. Talvez para reverter o próprio sentimento de culpa o narrador preocupe-se tanto com o destino da alma do amigo morto. Talvez, para compreender a solidão do amigo suicida, ele a encarne. De qualquer forma, há um processo de busca de si em meio a lembranças, uma formulação de si no outro, um jogo de espelhos entre história e memória. Um processo alucinante e melancólico. A culpabilidade inconformista com que o narrador rememora detalhadamente alguns diálogos com o amigo é absolutamente dramática, um drama cortante, seco e denso. Coisas banais tomam importância descontrolada em situações de morte, as lembranças quase materializam-se, pois são só o que resta. “Acho que ele não ligou, mas depois que tudo aconteceu acabei me arrependendo: nos dias seguintes ao suicídio, muita coisa voltou à minha cabeça” (p.87). Progressivamente, a melancolia cresce, de uma incompreensão escapista para uma raiva incontida, antes de alastrar-se como um sono insuperável, depois de ter se escondido numa insônia insistente. “Um dos problemas desse estado de sonolência é a bagunça nos horários” (p.121). O tempo, guiado pela consciência que se busca em memórias, também esfarela-se. O que faz com seja ainda mais significativa a relação entre história e colecionamento, entranhada, ainda que a ela seja inversamente proporcional, a uma outra relação, premente, entre saudades e tempo – “(…) tenho percebido que sentir saudades significa, em alguma parcela, arrepender-se” (p.18). O tempo está para a saudade como um abismo infinitamente crescente, ao passo que a história é um elo estrutural necessário para o colecionamento – “uma coleção não é um mero acúmulo, continuei, mas a história que há por trás de cada um dos itens” (p.75). A coleção tem o poder de guardar a passagem do tempo e presentificar o passado. No perplexo contexto do romance, isso torna ainda mais irônica e patética, emocionante, a figura protagonista do colecionador sem coleção; “(…) desde que comecei a sentir saudades de tudo, perdi um pouco a noção do tempo” (p.16).

O livro é uma coleção em si mesmo, uma coleção de memórias e, portanto, uma coleção de ausências. De silêncios. Talvez por isso nosso narrador grite tanto. E também por isso que chore depois, a resposta que lhe vem é novamente um silêncio solitário. A prosa de Ricardo Lísias em O céu dos suicidas é composta por frases no geral curtas e simples e por sentimentos colocados de maneira muito direta e sincera consigo, ainda que não resignados – “sinto saudades de tudo e isso me irrita” (p.44). Seu texto, desta maneira, também encarna a solidão. E ainda, de modo peculiar, a escancara, em frases particularmente breves e significativas, geralmente negativas, que são escritas em forma de parágrafos solitários, metáforas literárias do estado psicológico da própria personagem:

“Não consigo parar de chorar agora” (p.56);

“Deus desgraçado” (p.68).

Os silêncios reverberam, pairam depois desses parágrafos certeiros e ecoam na dramaticidade da narrativa, tornando-a mais humana, mais plausível, mais próxima.

O jogo de silêncios também faz aparecer o descaso conformista que a sociedade parece nutrir quanto ao suicídio, traduzida em termos religiosos – enraizados na moralidade, punitiva, porque amedrontadora – através da promessa de danação eterna àqueles que abdicam da própria vida. O embate celeste começa pelo título e, desde então, é irônico. Há a questão religiosa, freática, mas a remissão ao céu é também simbólica, digressiva: o céu é inalcançável, assim resume imaginariamente o inconformismo que circunda o próprio silêncio da morte.

Send to Kindle

Comentários