matraca

Lúcido catastrofismo

15 janeiro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Fayga Ostrower – Litogravura

Em sua essência, a poesia é algo horrível:

nasce de nós uma coisa que não sabíamos que está dentro de nós,

e piscamos os olhos como se atrás de nós tivesse saltado um tigre,

e tivesse parado na luz, batendo a cauda sobre os quadris.”

– Czesław Miłosz, Ars Poetica.

 

 

A poesia de Czesław Miłosz é, a um só tempo, reflexiva e discursiva. Uma poesia que prima por uma disciplina clássica e pela exata objetivação da emoção lírica, mas que o faz através da ironia e da linguagem simples, oral. O poeta polonês consegue sintetizar a experiência humana com uma retórica que desafia as inconstâncias do diálogo interior e desmascara os mecanismos da manipulação política. Sua poesia é parte do mundo em que vive.

No Brasil, há uma antologia de suas poesias, publicada em 2003 pela Edunb, intitulada Não mais. A tradução foi feita por Marcelo Paiva de Souza e Henryk Siewiersk. Uma pequena porém rica coletânea bilíngüe – polonês-português –, que faz parte da série “Poetas do mundo”, que a Universidade de Brasília vem publicando para divulgar poetas relevantes e pouco traduzidos no Brasil. Em uma apresentação escrita sobre o livro, a professora Regina Przybycien, do curso de pós-graduação de letras da UFPR, fala sobre a introdução dos tradutores, na qual eles lembram “que Milosz é um poeta do concreto (não um poeta concreto), isto é, insere-se no grupo daqueles que “entendem o ofício poético como mimese e o praticam numa incessante perseguição do real” . A professora traça uma breve análise do poeta: “Paradoxalmente, talvez, para um poeta que não gosta de abstrações, os temas de Milosz são profundamente filosóficos (e às vezes teológicos) […]. Como poeta polonês do século XX, Milosz viveu a experiência das guerras, dos autoritarismos e do exílio (destino comum de grande parte dos intelectuais seus conterrâneos), experiências que marcam profundamente sua poesia, refletindo-se em temas como a tensão entre vida e arte: o efêmero e o horrível da vida contrastando com o permanente e o belo da arte. O poeta, no entanto, não glorifica facilmente a arte. […] Poeta do seu século e da sua cultura, Milosz tem os pés bem no chão, o chão minado da Europa Central com suas tragédias sangrentas”.

Nas palavras do tradutor Marcelo Paiva, professor doutor da UFPR: “Em sua estréia literária, com a publicação de Poemat o czasie zastygłym (Poema sobre o tempo congelado), em 1933, a que logo sucede um outro livro de versos em 1936, Trzy zimy (Três invernos), Czesław Miłosz assumiu de pronto um lugar de destaque na chamada Segunda Vanguarda polonesa, cuja poesia se notabilizou pelo sombrio acento catastrofista nela recorrente. Eram tempos “estranhos e hostis”, lê-se por exemplo em “O ksia_ce” (“Sobre o livro”), texto escrito em Vilna, no ano de 1934, coligido em Três invernos, “e muita vez, não podendo dormir […], conferíamos no espelho se um estigma não se estampara em nossa fronte, em sinal de que fôramos condenados. Naqueles tempos não bastava prantear com palavras puras o pathos sempiterno do mundo, a época era de tormenta, o dia de apocalipse, antigos Estados eram destruídos, capitais ébrias giravam como fusos sob a espuma do céu. […] Fomos pois assinalados para criar uma fama – sem nome, como o grito de adeus daqueles que partem – na escuridão”.

Sobre a poesia de Miłosz, o tradutor Marcelo Paiva também tem escrito um interessante artigo, Um diálogo no meio do caminho: Czesław Miłosz, leitor e tradutor de Carlos Drummond de Andrade, em que sugere um diálogo com Drummond, de quem o polonês fora tradutor – apesar de desconhecer a língua portuguesa, tomou como base “In the Middle of the Road”, uma conhecida versão de “No meio do caminho” para o inglês, feita por Elizabeth Bishop. O artigo de Marcelo Paiva foi publicado no segundo volume da revista Água da Palavra – Revista de Literatura e Teorias; ele diz:  “O eixo fundamental do encontro de Czesław Miłosz com nosso gauche Carlos foi, precisamente, “No meio do caminho”. Pedra de escândalo nas lides e nas bravatas do primeiro tempo modernista, pedra no sapato do próprio poeta aqui e acolá e, em data mais recente, pedra de toque na prospecção crítica da poética drummondiana […]. A manobra do poeta, ensaísta e tradutor polonês presta testemunho, […] de uma leitura para nós um tanto atípica dos versos do mineiro, a qual faculta ver, para além de um outro Drummond, o próprio Czesław Miłosz, às voltas com os caminhos e os descaminhos de sua obra e de toda a poesia moderna. […] há um possível diálogo no meio do caminho”.

 

 

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NÃO MAIS

Preciso contar um dia como mudei

Minha opinião sobre a poesia e por que

Me considero hoje um dos muitos

Mercadores e artesãos do Império do Japão

Compondo versos sobre a floração da cerejeira,

Sobre crisântemos e a lua cheia.

Se eu pudesse descrever as cortesãs

De Veneza, como incitam com uma vareta o

                                          [ pavão no pátio

E desfolhar do tecido sedoso, da cinta nacarina

Os seios pesados, a marca

Avermelhada no ventre onde o vestido se

                                          [ abotoa,

Ao menos assim como as viu o dono das

                                          [ galeotas

Arribadas àquela manhã carregando ouro;

E se ao mesmo tempo pudesse encerrar seus

                                          [ pobres ossos

No cemitério, onde o mar oleoso lambe

                                          [ o portão,

Em palavras mais duráveis que o derradeiro

                                          [ pente

Que entre carcomas sob a lápide, só, espera

                                          [ pela luz

Não duvidaria. Da resistência da matéria

O que se retém? Nada, quando muito o belo.

Então devem nos bastar as flores da cerejeira

E os crisântemos e a lua cheia.

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NÃO MAIS

Autor: Czesław Miłosz
Editora: Editora UnB
Preço: R$ 8,91 (132 págs.)

 

 

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