Literatura

Mosaico de palco e mundo

18 janeiro, 2016 | Por Isabela Gaglianone
fotografia aérea da devastação causada pelas chuvas em Santa Catarina, em 2008

fotografia aérea da devastação causada pelas chuvas em Santa Catarina, em 2008

O catarinense Carlos Henrique Schroeder, já reconhecido como um dos grandes destaques da prosa brasileira contemporânea, foi bastante comentado no ano passado pelo lançamento de seu livro História da chuva.

Em larga medida autoficcional, profundamente pontuado no desastre causado pela chuva em Santa Catarina em 2008, por um lado, e, por outro, nas experiências teatrais de animação – teatros de bonecos –, o romance de Schroeder desenrola-se à maneira de um documentário narrativo, através de uma trama complexa, elaborada de maneira visualmente nítida, quase palpável, densamente cênica.

A conjuntura engenhosa de elementos e de relações acerca da verossimilhança fazem de sua prosa uma “experiência radical” de história. 

Sua narrativa gira em torno de duas personagens, Arthur e Lauro, amigos e parceiros profissionais dedicados ao teatro de marionetes, fundadores do GEFA – Grupo Extemporâneo de Formas Animadas, que é tema de uma matéria a ser escrita por uma terceira personagem, um alter ego do autor, que, com ele, compartilha o mesmo nome. Arthur, porém, é uma das vítimas fatais das enchentes caudalosas que tragicamente, em 2008, afetaram inúmeras cidades da região do Vale do Itajaí, em Santa Catarina. Schroeder dá início a uma série de entrevistas e diálogos com Lauro, a fim de rever a interessante história de Arthur, que fora um artista profícuo: mineiro, começara a carreira de teatrólogo com a apresentação de um espetáculo de rua, uma releitura livre do Dom Quixote, ainda em Belo Horizonte; chegara a Santa Catarina à procura de um recomeço, após a morte de vários amigos, vítimas de Aids, e, ali, juntara então seus esforços aos do carpinteiro Lauro, iniciando o belo trabalho que então desenvolviam com os bonecos de madeira.

Schroeder, editor de um selo pequeno e com um livro parado, percebe que a narrativa do perfil de Arthur poderia render-lhe um bom ensaio, quiçá que interessasse a alguma grande revista. A elaboração do enredo perpassa, sob esse viés, a investigação o valor da arte como instrumento, quer de fuga, quer de reinterpretação da vida. O autor narrador faz com que o leitor adentre os problemas do mercado literário, as dificuldades de comandar uma editora, a preocupação constante com editais e atividades paralelas para sobreviver. Paralelamente, também sua história pessoal desenrola-se ao longo da narrativa, passando, ele, de um jovem recluso a um adulto repleto por seus próprios interesses, enfim noivo, após anos necessários para superar o trauma de um antigo namoro com uma moça possessiva que o tentara castrar em meio a um acesso furioso.

Há ainda mais uma camada que entremeia-se às demais: a intercalação de trechos de uma peça teatral, espetáculo montado pelo diretor teatral Ricardo Satti em homenagem ao dramaturgo morto, apesar de, curiosamente, ter sido seu inimigo declarado.

Em entrevista concedida a Manoela Sawitzki, Carlos Henrique Schroeder diz, sobre as múltiplas camadas do livro, permeadas pela paulatina criação da personagem Arthur e pela força criativa e expressiva do teatro de bonecos: “Arthur e Lauro são também a busca de uma imagem: a do artista. As duas epígrafes do livro (Saer e Susanne Langer) tentam até apontar esse caminho, que é tortuoso e infeccioso.  Eu gosto desse palavra, ‘infecção’, e essa é a questão: onde começa a arte e onde termina o mercado? Onde elas se relacionam e se infeccionam? Realizar o perfil de Arthur seria também catalogar os sucessos e fracassos de um artista, e enfrentar duas perguntas: é possível ser imparcial no campo das artes? Até onde vai a liberdade? Durante muito tempo achei que o teatro de animação era a experiência mais radical dentro do teatro, e escrevi esse livro porque não tinha resposta para nenhuma dessas questões”.

Na mesma entrevista, questionado sobre a construção da narrativa sobre um cenário que para muitos não é senão um microcosmos desconhecido, pois uma região interiorana, o escritor disse: “Acredito que o território do escritor é sempre a palavra, mas meus fantasmas estão sempre por aqui, em Santa Catarina, então escrevo para confrontá-los. Às vezes funciona, outras, nem tanto. O Santiago Nazarian até levantou no ano retrasado o tema da ‘fuga da cidade’ como um recurso dos autores contemporâneos brasileiros: o livro do Galera se passa em Garopaba, os últimos do Nazarian e da Simone Campos também no interior. Não sei se é uma tendência ou não, mas eu moro no interior e estou contaminado por essa paisagem até a última raiz do cabelo. Há um mundo que não está nas páginas dos grandes jornais ou dos grandes palcos ou das grandes editoras, de artistas genuínos que por infortúnios diversos somem da história. Este livro é para eles”. Ainda na mesma entrevista, questionado sobre a relação entre a impotência, questão marcante nas trajetórias traçadas pelo livro, com a obra de Beckett, citado no romance e também no livro anterior do autor, As fantasias eletivas, Schroeder comentou: “Beckett foi um artista que fez poucas concessões, na literatura, no teatro, foi uma figura central na cultura do século passado e continua uma referência. Na sede da minha pequena editora há um adesivo de seis metros de largura com uma imagem dele. É para onde eu olho quando estou em dúvida sobre algo. É meu deus selvagem. Para mim é impossível pensar a literatura e o teatro sem olhar para sua obra. Mas História da chuva é sobre a impotência em diversos eixos: diante do amor, da rejeição, do desejo, da natureza, da arte e do mercado”.

 

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“Mesmo crescidos continuamos no palco: a vida é nossa peça e a morte, o fechamento das cortinas.”

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historiua da chuva

 

 

HISTÓRIA DA CHUVA

Autor: Carlos Henrique Schroeder
Editora: Record
Preço: R$ 36,66 (160 págs.)

 

 

 

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