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Mundus Alter

3 agosto, 2015 | Por Isabela Gaglianone

Leonilson

La Città Felice, ou A Cidade Feliz, é uma das primeiras utopias italianas, escrita em 1551 por Francesco Patrizi da Cherso (1529-1597), um dos protagonistas da fase de opúsculo do Renascimento italiano. A operetta foi escrita em Pádua, em 1551, e publicada em Veneza dois anos depois, reunida com outros escritos da fase de primeiros estudos do autor.

O autor foi incontestavelmente um dos maiores intelectuais do século XVI. Nascido em Cres, na atual Croácia, escreveu diversas obras, das quais se destacam o Trattato della Poetica, publicado em 1582, e o Della Retorica, em 1562.

Em sua cidade ideal, a cidade feliz, o amor reina e a reciprocidade, propaga-se. Diz o autor: […] a nossa cidade não deve ser infinitamente plena de pessoas, mas numa soma tal que, entre elas possam todas se conhecer, e feito melhor ainda, serão de várias sanguinidades e casais distintos. E de modo que o amor radical cresça e atinja uma perfeição tal, que faça fruto perfeito, quero que os convencidos públicos se nutram; os quais do público e no público se celebrem a cada mês pelo menos uma como era costume antigo do rei da Itália Italo, que antes de todos colocou este hábito em uso”

O ímpeto para o cultivo do amor é a chave da efetivação das relações sociais na utopia de Patrizi da Cherso. A obra, cujas inspirações, analisa-se, são de cunho neoplatônico, guarda em seio, porém, a semente da desigualdade, pois, na cidade feliz, coabitam dois grupos sociais distintos. Um, formado por camponeses, artesãos e comerciantes, a quem não é conferido o direito à cidadania; outro, composto pelos magistrados, guerreiros e sacerdotes seriam os verdadeiros cidadãos. É por isso que o tradutor da obra, Helvio Moraes, fala em na “utopia aristocrática de Francesco Patrizi”, em artigo publicado na revista Morus – Utopia e Renascimento.

Em outro bom artigo – “Cidade utópica e cidade ideal em Francesco Patrizi da Cherso” –, publicado na mesma revista, Moraes analisa: A Cidade Feliz de Francesco Patrizi esquiva-se da rigidez de classificações que tendem a sistematizar a pertença das obras literárias a gêneros específicos. Seus estudiosos se dividem entre os que lhe reconhecem o caráter de uma genuína utopia, os que a ele se mostram reticentes e ainda, de forma mais radical, os que totalmente o negam, conferindo-lhe o status de pequena súmula filosófica. Para muitos autores, o escrito patriziano se aproximaria mais do conceito de cidade ideal, como encontra-se postulado por Mannheim. Este autor considera que tanto o estado de espírito ideológico quanto o utópico estão em “incongruência com o estado de realidade dentro do qual ocorrem”. Contudo, mesmo que o estado ideológico transcenda a ordem de coisas existente, projetando mudanças, esta não se vê abalada, pois continua a ser a base sobre a qual tais alterações tendem a concretizar-se. Diversamente, o estado de espírito utópico tende a romper com a ordem vigente”. De acordo com Moraes, “é possível verificar em Patrizi traços da realidade política veneziana, assim como do mito criado em torno da perfeição de suas instituições. O que resulta de ambos projetos é uma configuração política e social de forte teor aristocrático”.

O pensamento utópico é uma forma de ver o mundo, tomando-o como causador de infelicidade – advinda da propriedade privada, do egoísmo ou da moral sexual repressiva. Renato Janine Ribeiro, por exemplo aponta que “uma vida sem utopia é medíocre – não fossem as utopias, haveria ainda a escravidão, a jornada de trabalho de 16 horas, a submissão da mulher ao marido… E não haveria as liberdades civis ou políticas”. Outro intelectual que pensa os limites da utopia é Isaiah Berlin, que caracteriza o pensamento utópico pela crença de que tudo o que seja bom possa estar de um mesmo lado; uma compatibilidade de base dos desejos, que torna difícil de admitir a possibilidade de conflito, que, então, passa a ser compreendido como consequência desastrada ou mesmo resto, não como algo inevitável e, de forma alguma, necessário.

A utopia é, por definição geral, uma descrição, imaginária, de uma sociedade ideal, justa e comprometida com bem-estar coletivo. Alguns autores buscaram compor, dentro dessa concepção, um universo ficcional para suas elucubrações. Com a coleção Mundus Alter, a editora da Unicamp, em 2012, iniciou a publicação da tradução de uma série de utopias literárias inéditas em português. Os primeiros volumes da coletânea são A Terra Austral Conhecida, de Gabriel de Foigny, e A Cidade Feliz, de Francesco Patrizi da Cherso. As traduções e as organizações dos volumes são de responsabilidade de pesquisadores do Centro de Pesquisa sobre Utopia, especialistas no assunto. O professor da Unicamp Carlos Eduardo Berriel, organizador da coleção, analisa que as obras suscitam reflexões concernentes à política, à ética e à religião: “Ao contrário da crença comum, a utopia não é uma visão ficcional do futuro, e sim uma reflexão sobre o presente, considerado como um complexo de graves problemas sociais e políticos que alarmam o ambiente cultural do utopista”, afirmou Berriel, conforme citado no artigo de Marcio Aquiles para a Folha de São Paulo. O professor contextualiza e diz que as utopias surgiram a partir do livro A utopia, escrito em 1516 por Thomas Morus (1478-1535), em um momento de transição entre a comunidade feudal e a sociedade moderna: “As utopias experimentam então, por meio de uma composição de traços satíricos e metafóricos, formas possíveis de Estado. Este desenho imaginário assume a forma de um ideal político, de uma sociedade onde todos estarão bem”. Segundo Ana Cláudia Ribeiro, tradutora de Foigny, de acordo com o mesmo artigo: “É errado associar um utópico a uma pessoa desprovida de senso de realidade. Muito pelo contrário, um utopista é alguém plenamente consciente dos problemas e contradições de sua época, tão consciente que consegue transformar reflexão política em literatura”. Já Helvio Moraes, pontua: “Temos um agudo exame, pelos autores, do momento histórico em que vivem. O próprio funcionamento do texto utópico parte de questões complexas e as discute de forma indireta, mediada pela ficção”.

 

de cherso 

 

 

A CIDADE FELIZ

Autor: Francesco Patrizi da Cherso
Editora: Unicamp
Preço: R$ 22,40 (136 págs.)

 

 

 

 

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