A ironia de Robert Musil chegaria a ser desconcertante, não fosse sua elegância, a sutileza com que simplesmente permeia as situações do romance. A ironia não é escancarada em palavras ou expressões, reside antes no simples espelhamento de diferentes relações entre diferentes personagens, à maneira de uma fuga musical. Essa ironia é o que faz satírico O homem sem qualidades. Filosoficamente satírico, inclusive, pois põe em questão a moral frente à impessoalidade do homem moderno, enquanto homem de pensamento, imerso numa complexa dinâmica de possibilidades e impossibilidades. Movimentos de paixão e razão, utopias de resguardo inescrutável. O romance inverte e confere novo sentido à dúvida cartesiana, imiscuindo realidade e sonho, sobre o terreno movediço da ironia. Maurice Blanchot afirma:
“O homem sem particularidades não é pois apenas o herói livre que recusa qualquer limitação e, recusando a essência, pressente que deve também recusar a existência, substituída pela possibilidade. É antes de tudo o homem qualquer das cidades grandes, homem intercambiável, que não é nada e não parece nada, o ‘Fulano’ cotidiano, o indivíduo que não é mais um particular mas se confunde com a verdade congelada da existência impessoal”.
(Blanchot, O livro por vir)
A busca da essência humana particularizada na sociedade moderna, a impessoalidade do eu abstrato em meio à existência epidérmica social.
O livro é construído aos poucos, em pequenos fragmentos. Ele próprio é como o Reino dos Mil Anos que descreve, seu tempo é aprisionado em pequenas frações que se encontram numa ideia abstrata, frutos de uma essência evanescente. Nesse tempo, não há passado ou futuro, qualquer lembrança nos leva consigo ao tempo de onde ela vem, presentifica-se. Conforme os pensamentos imiscuem-se aos acontecimentos, somos carregados a eles, na condição de testemunhas, acompanhando-os sempre em primeiro plano, porque a fragmentação em tantos capítulos curtos retarda o tempo no romance de Musil, faz com que os dramas que o compõem sejam uniformemente iluminados durante todo seu desenrolar. Cada fragmento de sua composição é, como diria o filósofo romântico F. Schlegel a respeito de seus próprios fragmentos filosóficos, “como uma pequena obra de arte, totalmente separado do mundo circundante e perfeito e acabado em si mesmo como um porco-espinho”, o que faz do livro uma metonímia desenrolada sobre si mesma, uma coleção de eternas partes sempre retornando à unidade totalizante do presente abstrato. Schlegel, a quem os fragmentos foram o principal viés de expressão filosófica, considerava não somente a si mesmo um sistema de fragmentos, como reconhecia, na atividade originária do eu, um caráter reflexivo que implicaria uma necessária fragmentação: “ao refletir não podemos explicar o sentimento de limitação que nos acompanha constantemente na vida senão quando admitimos que somos somente um pedaço de nós mesmos” (citação de O dialeto dos fragmentos).
A forma da filosofia deslocou-se para um campo literário no romantismo alemão e, em movimento análogo apesar de contrário, a literatura identificou poesia e filosofia, criação e crítica, e o próprio gênero romance passou a ser um meio pelo qual combinam-se diferentes gêneros poéticos. Musil talvez pudesse estar em algum lugar entre o “romance puro gideano” e sua “extrapolação épica em Döblin”, como diz Benjamin. Não somente a história de O homem sem qualidades é inacabada, mas também o livro como possível monumento romântico. Outra ironia. Há um embate entre uma unidade humana, essencial, e uma divisibilidade incerta; ambas condicionam-se apesar de contradizerem-se e, entre elas, oscila o romance, ao mesmo tempo literário e filosófico, um romance cuja extrapolação épica acaba por ser metafórica em relação à ideia de monumento do romance moderno; fragmento do carcomido império, substituído pelo estilo burguês, ambos satirizados. Mesmo o romance fica na condição incerta de eterna possibilidade. Nas palavras de Otto Maria Carpeaux,
“(…) ficando numa eterna disponibilidade para ser nem isso nem aquilo mas tudo ou nada. Por isso deu Musil ao seu gigantesco romance o título Der Mann ohne Eigenschaften, que se costuma traduzir: O homem sem qualidades. Mas mais exato seria: O homem indefinido. É um problema psicológico e ontológico que toca nas bases da própria existência da inteligência: é o primeiro motivo da validade geral dessa obra”.
(Carpeaux, História da literatura ocidental)
Um diagnóstico cáustico de época e mundo, a obra de Musil é uma sátira moral e filosófica do homem e da sociedade modernos. Uma análise artística que rebate criticamente a experiência do mundo e do homem entre jogos de espelhos. Seu tema desenrola-se em sua forma, ambos implicam-se mutuamente, ao passo que são chaves para pensar o homem abstrato que, ironicamente, ganha ares de uma certa melancolia desesperada, a história que não tem desfecho mas mantém-se à mercê de qualquer plausibilidade, o romance que ecoa a si mesmo, a investigação que o permeia e se apresenta em fragmentos. A questão filosófica, especialmente moral, que motiva o romance, desdobra-se, sociologica e antropologicamente por um lado, psicologicamente, por outro.
Um romance-ensaio segundo Carpeaux, que o define com precisão:
“Musil tem o senso tipicamente austríaco de auto-ironia. Irônico é o assunto – enquanto se pode falar em assunto da obra: uma ação patriótica que não se realiza e nunca se realizará. Porque “na Áustria nada se realiza”. Nem sequer o romance de Musil, que ele nunca terminou. A obra, apesar de volumosa, é fragmento. Musil é psicólogo-moralista. Trata-se, mais uma vez, de um romance-ensaio sobre a decadência dos valores na Áustria, símbolo da decadência dos valores na Europa e no mundo, vista apelos olhos do “Homem indefinido”, do intelectual sem qualidades definidas. (…) Não há um motivo para lamentar o estado fragmentário desse “work in progress”, de tal modo que continuam as discussões sobre a ordem certa dos fragmentos deixados sobre o desfecho. O que existe é arquitetonicamente construído e perfeitamente elaborado é uma obra-prima inacabada”.