no princípio
Filosofia então teve início
na tentativa de liquidação
do universo (arranjo,
adereço, cosmético): promessa
de fluidez sem caroço
e coisa e Tales.
Meditações mediterrâneas. Hidráulica
arcaica. Absoluto
dissoluto.
A primeira
imprecisão é a que fica?
Rubens Rodrigues Torres Filho
MUSIL, O homem sem qualidades
(Nova Fronteira, tradução de Lya Luft e Carlos Abbenseth)
O homem sem qualidades é logo apresentado a seu leitor. Sua principal qualidade é não ter nenhuma, pois ele é desprovido do dito senso de realidade e possui, em seu lugar, um senso de possibilidade:
“Assim, o senso de possibilidade pode ser definido como capacidade de pensar tudo aquilo que também poderia ser, e não julgar que aquilo que é seja mais importante do que aquilo que não é. (…) não raro fazem parecer falso aquilo que as pessoas admiram, e parecer permitido o que proíbem, ou ainda fazem as duas coisas parecerem indiferentes. (…) podemos entrever como uma pessoa que não tenha senso de realidade nem em relação a ela própria pode sentir-se de repente um homem sem qualidades” (pp. 34-36).
Se concordarmos com Maurice Blanchot, veremos o tema do livro inscrito em seu título e o tal ‘senso de possibilidade’, assim exposto nas primeiras páginas do monumental romance, como sua chave fundamental de leitura.
“A expressão ‘homem sem qualidades’, embora de um uso elegante, tem o inconveniente de não ter o sentido imediato, e de deixar perder-se a idéia de que o homem em questão não tem nada que lhe seja próprio: nem qualidades nem tampouco nenhuma substância. Sua particularidade essencial, diz Musil em suas notas, é que ele não tem nada de particular.”
(Blanchot, O livro por vir).
O homem em questão, portanto, seria não exatamente sem qualidades, mas sem peculiaridades. “Nada, precisamente nada!”, “eis a espécie que nossa época produziu”, é o que diz sobre ele o antigo amigo que lhe confere a alcunha. Tudo, para este homem sem peculiaridades, o que acontece e também o que não acontece, equivale-se como variações plausíveis, genuínas possibilidades. Por isso ele não consegue decidir-se, nem mesmo por um caráter. Por isso talvez também Musil não tenha conseguido jamais terminar seu romance. Pois o romance é inacabado, mas metaforicamente também o é seu protagonista, impreciso, em seu mundo restrito a infinitas e incontornáveis potencialidades.
Num incerto salto tigrino que corre o risco de nos levar tão somente a um anacronismo berrante, fazem coro palavras de nosso contemporâneo escritor espanhol Javier Marías no seu romance Coração tão branco:
“(…) o que vemos e ouvimos acaba se assemelhando e até se igualando ao que não vimos nem ouvimos, é apenas uma questão de tempo, ou de que desapareçamos. (…) O que ocorre é idêntico ao que não ocorre, o que descartamos ou deixamos passar idêntico ao que pegamos e agarramos, o que experimentamos idêntico ao que não provamos, e no entanto vai-nos a vida em escolher, rejeitar e selecionar, em traçar uma linha que separe essas coisas que são idênticas e faça de nossa história uma história única que recordemos e possa ser contada.”
(Marías, Coração tão branco).
Para ele, o que aconteceu e o que poderia ter acontecido entrelaçam-se, tem a mesma concretude, apesar serem definitivos e desembocarem na retumbante pergunta, “e agora?”. Para o homem sem qualidades, o que não existiu não deixa de existir como potência e resguarda-se em divagações ou investigações filosóficas, especialmente morais, que se desdobram em suas ações e opiniões. Também o que aconteceu poderia ter acontecido de outra maneira. Os fatos estão sempre prestes a inverterem-se de acordo com as relações estabelecidas, dentro dos maleáveis limites da pura possibilidade. Mesmo realidade e utopia mesclam-se indefinidamente. A verdade perde seu estatuto ontológico e desmorona-se em fragmentos possíveis.
O tema desenvolve-se no personagem e vice-versa. Os dois complexos temáticos que dividem o livro e sobre os quais modula sua tonalidade acabam sem peculiaridades que os explique ou resolva. Tanto quanto o homem sem qualidades, são pura plausibilidade. É por isso que Blanchot pode referir-se ao protagonista como uma representação do homem moderno: impessoal, abstrato, imerso na “neutralidade das grandes existências coletivas”, a quem as sequências de possibilidades são ilimitadas e que, “por vocação e por tormento, [tem] de viver a teoria de si mesmo, o homem abstrato que não é e não se realiza de maneira sensível”. Ulrich – nosso protagonista ganha um nome após ter sido apresentado como um “homem sem qualidades”, mas jamais um sobrenome – é uma abstração. Uma abstração intelectual, cuja humanidade é dramática, pois desenrolada principalmente no incesto nunca concretizado; mesmo sua relação consigo mesmo tem que ser projetada num outro, quase gêmeo, a única possibilidade de amar a si mesmo é através de um espelho.
A condicionalidade é perpétua e irresoluta. Ao contrário do que ocorre no conto “Na galeria”, que Kafka inicia com uma partícula condicional “se”, numa frase que é todo um parágrafo. Ela guarda uma possibilidade que é somente sonhada, o que diz o segundo parágrafo, espelhado: a realidade, que faz chorar. A possibilidade, alí, é quimérica, ao passo que a realidade, concreta, imutável e frustrante. O conto é marcado por quatro tempos: “se”, “– talvez”, no primeiro parágrafo, e, no segundo, “mas [uma vez que não é assim]” e “– uma vez que é assim, o espectador da galeria apoia o rosto sobre o parapeito e, afundado na marcha final como num sonho pesado, ele chora sem o saber”. Em Musil não há desilusão, pois ele está imerso na imprecisão de sua própria impossibilidade.