Publicado em 1990 pela Companhia das Letras, o interessante estudo de Flora Süssekind, O Brasil não é longe daqui – O narrador, a viagem, alia análise histórica a um olhar atento ao lirismo de seu material: por entre charadas, textos de divulgação científica, estampas de plantas e animais, pequenas biografias e casos curiosos, Süssekind trata do narrador de ficção na literatura brasileira, o qual surpreende em pleno movimento, ao longo do processo histórico de sua formação, desde os relatos de viagens – fundamentais para a criação de um imaginário paisagístico do Brasil –, mediados pela figura de um narrador-viajante que, mutante – ora cartógrafo, ora historiador, ora cronista –, daria as cartas na nossa prosa de ficção romântica.
A análise de Süssekind primeiro investiga e data “a constituição de um narrador de ficção na prosa brasileira”. Ao mesmo tempo, partindo de “uma questão específica no campo da historiografia literária”, analisa a noção do “começo histórico, da ‘origem’ entendida como processo de emergência e singularização, em meio a escolhas, repetições e diferenciações, figurações e recomposições diversas”. Assim, delimitando a caracterização que tanto constitui, quanto origina o narrador de ficção, a autora acompanha o narrador-viajante desde seu surgimento, nas décadas de 1830 e 1840, na prosa ficcional brasileira.
Ela aponta, por exemplo, que: “Olhos e ouvidos ao léu, é também como observadores da Natureza e dos costumes que se comportam esses viajantes não-cientistas e redigem, sob formas diversas – epístolas, diário, memórias, relatórios – os seus relatos. Observadores bastante diversos, entretanto, dos cientistas-viajantes também em trânsito na época”.
Segundo Wiliam Pianco, pesquisador em Cultura, Comunicação e Artes – autor de uma tese de doutorado dedicada aos “filmes de viagem de Manoel de Oliveira” –, no artigo “Reflexões sobre O Brasil não é longe daqui e O manuscrito perdido: uma proposta metodológica”, publicado na Revista Universitária do Audiovisual da UFSCAR, “é incontestável o alerta da autora sobre outras possibilidades literárias na prosa de ficção do país que foram deixadas de lado em detrimento de um modelo que visou privilegiar a ideia de identidade nacional. No tocante ao “não estar de todo”, para o qual chama a atenção, Flora Süssekind indica todo o incômodo ao se deparar com um olhar estrangeiro – ou, ainda quando brasileiro, moldado pelo exterior – de distanciamento, do não envolvimento, de quase apropriação sobre o espaço observado, da não entrega, resumidamente, da imposição externa perante a cultura local”.
Para Pianco, é notável “o reconhecimento da impossibilidade de retorno à origem de um país forjado para a afirmação de sua literatura própria. Impossibilidade de retorno porque esse país, com tais contornos, paisagens, geografias e histórias, nunca existiu. Daí a incontornável urgência de sua fundação e, fundamentalmente, do ‘ensinar a ver’, do ‘organizar para olhos nativos a própria imagem’, tão característicos do narrador-viajante das décadas de 30 e 40 do século XIX. Em outras palavras, perambular pelo país, “’registrar a paisagem, colher tradições: esta a tarefa não só dos viajantes estrangeiros que visitam e definem um Brasil nas primeiras décadas do século passado, este o papel que se atribuem também escritores e pesquisadores locais à época’”.
Nos relatos subjetivos, diz Süssekind, “o sentimento do mundo sintoniza-se ao autoconhecimento, o aprendizado é sempre também de si mesmo”. Há, ao longo de sua pesquisa, uma profunda reflexão sobre diferentes estilos narrativos sobre o tema da viagem, enquanto “relatos românticos” em oposição aos “relatos científicos”, ou enquanto gênero específico de discurso: “o relato meio anedótico de aventuras e fatos pitorescos em países distantes, […] o diário de viajantes movidos por interesses particulares, e os relatos dos ‘viajantes ilustrados’”.
E há uma exceção à regra do narrador-viajante na prosa de ficção brasileira: o narrador machadiano. Pois Machado de Assis não transforma o viajante em herói, pelo contrário: “Nem aventura, nem expedição científica, nem regresso à origem, a viagem do narrador machadiano é ao redor de si mesmo, das dicções narrativas, dos casos diminutos e posições ideológicas do seu tempo”.
O BRASIL NÃO É LONGE DAQUI – O NARRADOR, A VIAGEM
Autor: Flora Süssekind
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 36,40 (320 págs.)