Literatura

O caso Meursault

8 novembro, 2016 | Por Isabela Gaglianone

“Imagine só, meu irmão poderia ter ficado famoso se o seu autor tivesse ao menos dignado a lhe atribuir um nome, H’med, Kaddour ou Hammou, apenas um nome, ora! Mamãe poderia ter conseguido uma pensão como viúva de mártir, e eu teria um irmão conhecido e reconhecido do qual poderia me vangloriar. Mas, não, ele não lhe deu nenhum, porque, senão, meu irmão criaria um problema de consciência para o assassino: não se mata um homem facilmente quando ele tem um nome”.

Romance vencedor do Goncourt, principal prêmio literário da França, O caso Meursault, do jornalista e escritor argelino Kamel Daoud, foi lançado no Brasil pela Biblioteca Azul da Editora Globo em julho deste ano, com tradução de Bernardo Ajzenberg. Aclamado pela crítica francesa, também vencedor dos prêmios Cinco Continentes e François Mauriac, o romance reescreve a história do assassinato descrita n’O estrangeiro, de Camus, porém, sob o ponto de vista do irmão do árabe morto na praia por Meursault, o protagonista camusiano.

O irmão reivindica  a identidade do morto, que não recebe sequer nome no romance de Camus. “Você pode imaginar”, diz o personagem de Kamel Daoud, “a genialidade que era necessária para transformar um ‘fait divers’ de dois parágrafos em uma tragédia que descreve a cena e a famosa praia, detalhe por detalhe. Eu sempre detestei aquela insultante brevidade – como era possível atribuir tão pouca importância a uma morte? O que mais posso lhe dizer? O seu herói se divertiu com um recorte de jornal encontrado na sua cela de prisão, enquanto eu o tinha debaixo do meu nariz a cada crise de mamãe. Ah, a brincadeira! Você está entendendo agora? Entende por que eu ri na primeira vez que li o livro do seu herói? Em vez de encontrar nessa história as últimas palavras do meu irmão, a descrição da sua respiração, suas reações diante do assassino, suas marcas e seu rosto, como eu esperava, encontrei apenas duas linhas sobre um árabe. A palavra ‘árabe’ aparece ali vinte e cinco vezes, sem nenhuma menção a um nome qualquer, em nenhum momento”.

Encontramos toda a ira e frustração acumuladas após setenta anos do assassinato neste irmão, que não se resigna a manter no anonimato aquela vítima tão gratuita, e que mostra sua angústia também com seu país, vociferando contra a necessidade dos homens por um deus, decidido a colocar um nome e um rosto naquela figura que a literatura se havia permitido ignorar, que conhecia apenas como “o árabe”.

Para Adam Schatz, colaborador da London Review of Books, em artigo publicado pela revista piauí, o romance de Daoud, publicado “na Argélia em 2013, não apenas dá nova vida ao clássico que o precede, como também expressa uma crítica vigorosa à Argélia pós-colonial – um país que Camus, um francês pobre nascido na Argélia, não viveu para ver”. Schatz diz: “Nos textos de Daoud, seja nos jornalísticos, seja nos literários, salta aos olhos o destemor com que ele defende as liberdades individuais – um destemor que me pareceu chegar às raias da irresponsabilidade num país em que são intensas as paixões coletivas despertadas pelo nacionalismo e pela religião. Fiquei me perguntando se sua experiência podia fornecer alguma pista da situação em que se encontra a liberdade intelectual na Argélia, um híbrido de democracia eleitoral e Estado policial. No fim do ano passado, tive uma resposta. Daoud já não era apenas um escritor: era um nome em relação ao qual se devia tomar uma posição, tanto na Argélia como na França”. O crítico diz isso pois Daoud, enquanto fazia uma turnê de divulgação de Meursault na França – onde foi recebido com entusiasmo – foi convidado a participar de um  popular programa de entrevistas na tevê, On N’est Pas Couché [Não Estamos Dormindo]. Contou posteriormente a Schatz como se sentiu: “como se o peso de toda a Argélia estivesse sobre meus ombros”. Daoud disse que se considerava argelino, e não árabe, postura comum na Argélia, mas que sofre oposição dos nacionalistas árabes; acrescentou que falava “argeliano”, e não o árabe. Disse, conforme cita Schatz, “que preferia encontrar Deus a pé, por conta própria, em vez de integrar uma ‘excursão organizada’ a uma mesquita, e que a ortodoxia religiosa havia se tornado um obstáculo ao progresso no mundo muçulmano”. O escritor dividiu opiniões. Foi ameaçado publicamente pelo obscuro imã Abdelfattah Hamadache, defendido por Ali Belhadj, líder da proibida Frente Islâmica de Salvação. Daoud é um crítico lúcido da história de seu país.

Quando terminou a faculdade, conta Shatz, “Daoud foi trabalhar como repórter policial no tabloide mensal Detective. (‘O que fez de The Wire uma série fantástica’, ele disse, ‘é que foi uma colaboração entre um escritor e um policial, os vira-latas do mundo.’) Viajando para cidades pequenas e remotas, escrevendo sobre julgamentos de assassinatos e crimes sexuais, Daoud se deparou com ‘a Argélia real’. Em 1996 o Detective acabou e ele foi contratado pelo Le Quotidien d’Oran. Enquanto outros jornalistas reclamavam do perigo ao enfrentar rebeldes islamistas, Daoud foi entrevistar os insurgentes. Relatou alguns dos piores massacres da guerra civil, incluindo a matança de 1998 na aldeia de Had Chekala, onde mais de 800 pessoas foram assassinadas. A atuação como repórter ensinou-o a suspeitar de ‘posições acirradas e análises grandiosas’, e essa sensibilidade inspirou a coluna que começou a assinar. Daoud não representava ideologia nenhuma e não falava em nome de ninguém. Para seus novos admiradores, era algo digno de comemoração: enfim, um espírito livre genuinamente argelino. Para os adversários, ele se tornou o rosto de uma ‘geração do eu’: egoísta, vazio, não argelino”. O crítico pontua que: “Há tempos, críticos nacionalistas falam como se o assassinato ali descrito tivesse acontecido de fato, e como se Camus, cuja oposição à independência do país muitos escritores conterrâneos tiveram dificuldade em perdoar, o tivesse cometido. A inspirada ideia de Daoud foi dar o passo seguinte: atribuiu a autoria do romance de Camus (narrado em primeira pessoa) ao protagonista Meursault, o assassino fictício de O Estrangeiro. Assim como ‘o árabe’ nunca é nomeado em O Estrangeiro, o nome de Camus jamais é mencionado em Meursault: Contre-Enquête.

A segunda metade do romance, porém, diz Shatz, “mostra que essa crítica pouco tem a ver com a Argélia de hoje e nega ao leitor a satisfação fácil de uma justiça anticolonial. É a Argélia, e não Camus, que está em julgamento. Harun, percebemos, é também um estrangeiro num país dominado pelo fervor religioso. A mesquita da cidade lhe parece tão imponente que ‘impede que se veja Deus’; o sujeito recitando o Corão soa como se estivesse representando todos os papéis, de ‘torturador a vítima’. Homens perambulam de chinelos e pijamas amarfanhados, ‘como se a sexta-feira os isentasse das exigências da civilidade’. Sexta-feira ‘não é o dia em que Deus descansou: é o dia em que decidiu fugir e nunca mais voltar’”. De acordo com o crítico: “À procura do irmão, Harun na verdade encontra seu próprio duplo: ele, Harun, é o irmão argelino de Meursault – como ele, um criminoso em circunstâncias igualmente absurdas, um estrangeiro numa terra dividida entre ‘Alá e o tédio’. Quando um imã o exorta a aceitar Deus antes que seja tarde demais, Harun rejeita o apelo com violência, quase com as mesmas palavras que o Meursault de Camus emprega em sua conversa com o padre que, antes da execução, lhe pede para aceitar Cristo. ‘Restava-me tão pouco tempo que eu não queria desperdiçá-lo com Deus’, diz. ‘Nenhuma de suas certezas valia um fio de cabelo da mulher que eu amava’. Essa é apenas uma de muitas frases surrupiadas de Camus. Meursault, menos que uma crítica a O Estrangeiro, é sua continuação pós-colonial”. Para o autor, “O Estrangeiro é um romance filosófico, mas só conseguimos lê-lo como um romance colonial”; questionado sobre o que mais lhe atraía na ficção de Camus, Daoud disse: “A questão mais profunda em Camus é religiosa: o que fazer com Deus, se Deus não existe? A cena mais poderosa em O Estrangeiro é o confronto entre o padre e o condenado. Meursault é indiferente às mulheres, ao juiz, mas se enfurece diante do padre. E, em meu romance, temos alguém que se revolta contra Deus. Para mim, Harun é um herói numa sociedade conservadora”.

Kamel Daoud nasceu na Argélia em 1970. Filho de um policial, foi o único de sua família a ter acesso à educação formal. Antes de se dedicar exclusivamente à literatura, trabalhou como jornalista do Quotidien d’Oran, jornal argelino em língua francesa. Atualmente, contribui com revistas e jornais franceses, entre outros de todo o mundo. Em 2016, pouco antes de abandonar o jornalismo por conta da recepção hostil de parte do mundo acadêmico a seus artigos sobre o Islã, foi agraciado com o prêmio Jean-Luc Lagardère de “jornalista do ano” na França.

 

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[trecho]

 

Minha aprendizagem da língua foi, então, marcada pela morte. É claro que eu lia outros livros, de história, de geografia, mas tudo tinha de se referenciar à nossa história familiar, ao assassinato de meu irmão e àquela maldita praia. Essa encenação só terminou poucos meses antes da Independência, quando minha mãe adivinhou, talvez, os passos tresloucados de Joseph, ainda vivo, perambulando por Hadjout em torno da sua própria sepultura com suas sandálias de praia. Eu já tinha esgotado todos os recursos de que dispunha quanto ao idioma e à minha imaginação. Não tínhamos outra escolha a não ser aguardar. Aguardar que alguma outra coisa acontecesse. Aguardar aquela famosa noite em que um francês apavorado aparecesse na escuridão do nosso quintal. Sim, eu matei Joseph porque era preciso criar um contrapeso ao absurdo da nossa situação. Onde foram parar aqueles dois recortes de jornal? Vá saber… Desintegraram-se, desmancharam, de tanto ser dobrados e desdobrados. Ou então mamãe talvez os tenha finalmente jogado fora. Eu estava bastante inspirado para poder escrever o que inventava naquela época, mas não tinha os meios para isso e não sabia que o crime poderia virar um livro, e a vítima, um mero feixe vivo de luz. Culpa minha? Você pode então imaginar o impacto causado em nós quando uma moça de cabelos castanhos bem curtos bateu em nossa porta e fez uma pergunta que ninguém havia feito antes: “Vocês são a família de Moussa Ould el-Assasse?”. Era uma segunda-feira de março de 1963. O país estava em festa, mas reinava uma espécie de temor no ar porque o animal que se alimentara de sete anos de guerra agora se tornara voraz e se recusava a voltar para onde estava antes. Uma disputa surda pelo poder se desenvolvia entre os chefes que tinham vencido a guerra. “Vocês são a família de Moussa Ould el-Assasse?”

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O CASO MERSAULT

Autor: Kamel Daoud
Editora: Globo
Preço: R$ 31,92 (168 págs.)

 

 

 

 

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