lançamentos

O circuito dos afetos

8 outubro, 2015 | Por Isabela Gaglianone
Gravura de Marco Buti

Gravura de Marco Buti

O circuito dos afetos, novo livro do filósofo Vladimir Safatle, acaba de ser lançado, pela editora Cosacnafy.

Trata-se de uma interessante análise sobre o conceito moderno de indivíduo enquanto, sobretudo, um sistema de afetos. A investigação de Safatle, professor de filosofia da USP, parte da articulação entre psicanálise, filosofia e teoria social.

“Sujeitos políticos não constituem um povo, esta será a última lição de Freud. Eles desconstituem o povo como categoria política, sem para isso cair na ilusão de uma sociedade como mera associação de indivíduos”, diz o autor.

Sua indagação matriz é: “Qual o sentido da política no mundo contemporâneo?” – questão que suscita o levantamento de novos paradigmas políticos, justo em um momento histórico em que tanto as utopias de esquerda quanto o próprio capitalismo encontram-se em descrédito. Para desenvolver sua reflexão, o autor sugere uma linha interpretativa que passa por Aristóteles, Espinosa, Hobbes, Giorgio Agamben, Michel Foucault e chega à discussão com expoentes atuais da Escola de Frankfurt. 

Desenvolvendo as consequências políticas do primado do indivíduo com seus afetos, sobretudo com o medo e a segurança, o texto de Safatle também levanta caminhos para sua superação, através da recuperação de certos aspectos da teoria freudiana.

Segundo o psicanalista e professor Christian Ingo Lenz Dunker, em resenha ao livro, publicada pela Revista Cult, para compreender o pensamento de Vladimir Safatle “é preciso ter em mente o estruturalismo francês assim como a teoria crítica alemã. Se o primeiro é marcado pela permanência da estrutura antropológica, o segundo concentra-se na dialética do tempo histórico. Entre ambos, Vladimir reteve não só a reposta de Lévi-Strauss a Braudel (as estruturas mudam, mas muito lentamente) mas também a resposta de Adorno a Celan (é possível poesia após Auschwitz, mas ela ainda está indeterminada). Entende-se assim o primeiro retorno inusitado do texto: contrapor a antropologia hobbesiana de Totem e tabu à utopia histórica de O homem Moisés e a religião monoteísta. Sem isso não saímos, nem na clínica, nem na política, da estratégia que cria medo para vender segurança (o poder que melancoliza) e só conseguimos pensar o poder como disputa pela soberania ou como nostalgia do pai. Sem isso terminaremos na psicologização de nossas demandas endereçadas a um Estado terapeuta”. Para Dunker, ponto crucial da análise de Safatle é o “universalismo negativo” de seu pensamento, uma “espécie de bala de prata contra o vampirismo que tem se aproveitado da renovação do pensamento de esquerda para manter viva a caça aos comunistas, como inimigos necessários para uma política do ódio. Esse universalismo aparece na recuperação crítica da noção de vida e de anomalia, retomadas do epistemólogo da Biologia, Georges Canguilhem. Esse universalismo aparece ainda em sua crítica da pequena política baseada na confrontação de unidades particulares de gozo. Ele prospera também nessa versão não liberal do corpo e dos afetos como fonte primeira e última de nossa relação com a liberdade. Liberdade que será encontrada e rediviva naquela figura que imaginariamente melhor representa sua negação, a saber, o desamparo. Como o herói bíblico de Jó; como Kierkegaard, o amante às voltas com a repetição; como o Lumpenproleteriat de Marx, como o sujeito lacaniano sem predicados, a figura teórica da despossessão atravessa o livro. Ela nos provoca e nos ensina que é preciso inventar uma nova modalidade de ter, de possuir, de se apropriar das coisas, das ideias, das pessoas e de si mesmo. Ali onde nosso judicialismo patológico só consegue ver contratos e indivíduos, ali onde há um infinito de responsabilidades por vir”. Prosseguindo seu comentário, o psicanalista ainda acrescenta que: “Só ao final entende-se por que o livro abre com Kafka, de O processo e os seus juízes leitores de pornografia barata. É porque Safatle quer libertar a política de sua condenação a ser mera reinvindicação de ampliação de direitos, por meio de grupos organizados, dirigidos por interesses e afetos comuns”.

A sociedade é mais que um sistema organizado de leis e regras. Ela envolve uma dinâmica de circulação de afetos responsáveis por operar transformações. E dizer que o capitalismo é um circuito de afetos significa dizer, entre outras coisas, que não se deseja da mesma forma dentro e fora do capitalismo, assim como não se sofre, nem se é afetado da mesma forma. Safatle mostra que uma crítica social atenta à natureza dos circuitos de afetos deve perguntar-se sobre as possibilidades de que os indivíduos sejam afetados de outra forma, desejem de outra forma e sofram de outra forma: a crítica deve conseguir articular experiência social e dinâmica subjetiva.

Conforme citado pela revista Carta Capital, o autor diz, sobre uma das primeiras linhas teóricas que direcionam sua reflexão ao longo de Circuito dos afetos, que se trata de uma “tentativa de desenvolver de forma mais sistemática a articulação entre afetos e corpo político. Uma articulação enunciada pela filosofia política moderna ao menos desde Hobbes. Pois seria difícil não partir de sua afirmação canônica: ‘De todas as paixões, a que menos faz os homens tender a violar as leis é o medo. Mais: excetuando algumas naturezas generosas, é a única coisa que leva os homens a respeitá-las’”.

Na conferência “O afeto como utopia”, que fez parte do ciclo “Mutações” – transformado em livro homônimo sob organização de Adauto Novaes, Safatle disse: “Sociedades são, em seu nível mais fundamental, circuitos de afetos. Enquanto sistema de reprodução material de formas hegemônicas de vida, sociedades dotam tais formas de força de adesão ao produzir continuamente afetos que nos fazem assumir certas possibilidade de vida a despeito de outras. Devemos ter sempre em mente que formas de vida determinadas fundamentam-se em afetos específicos, ou seja, elas precisam de tais afetos para continuarem a se repetir, a impor seus modos de ordenamento definindo, com isto, o campo dos possíveis. Há uma adesão social construída através das afecções”. Dentre as afecções, há uma relação pendular entre medo e esperança: “não há esperança sem medo, nem medo sem esperança”. Daí porque “viver sem esperança”, disse uma vez Lacan, “é também viver sem medo”. Para o nosso autor, “há ainda uma dimensão estrutural profunda que aproxima medo e esperança. Ela refere-se à dependência que tais afetos demonstram em relação a uma mesma forma de temporalidade, dominada pela expectativa”. Na conferência, seu intuito foi mostrar que “o conceito freudiano de desamparo pode servir de alternativa para pensar novos circuitos dos afetos que não passem nem pelo medo nem pela esperança”, o que obriga a “discutir que forma de temporalidade é esta que nasce para além dos horizontes de expectativas”.

No artigo “Abaixo de zero: psicanálise, política e o “deficit de negatividade” em Axel Honneth”, publicado na revista Discurso [n° 43, 2013], o filósofo comenta outro ponto crucial dentro da análise que desenvolve em O circuito dos afetos, a saber, o diálogo com o frankurtiano Axel Honneth à luz de conceitos psicanalíticos. Segundo Safatle, Honneth não pensa “de maneira adequada a teoria freudiana das pulsões, em especial a pulsão de morte. Honneth acredita que a teoria crítica deveria se abster de uma teoria das pulsões, reduzindo a experiência subjetiva da negatividade a um “resultado inevitável de nossa socialização”. Por ver a negatividade subjetiva apenas como resultado de processos de socialização, e não como determinação essencial da condição humana, ele deve reduzi-la à manifestação de tendências agressivas, antissociais ou autodestrutivas a serem superadas”. Para o brasileiro, “é interessante lembrar como filósofos ligados à reflexão sobre a biologia, como Georges Canguilhem, declaravam não ver em que a teoria freudiana deveria ser refutada (Canguilhem 1990). Trabalhos recentes em biologia, como os que podemos encontrar em Henri Atlan (1979 e 2006) e Jean Claude Ameisen(2003) poderiam corroborar a hipótese. Isto implica que uma parte significativa da discussão deve passar pela avaliação da plausibilidade da defesa da pulsão de morte como hipótese biológica, o que não ocorre em Honneth”. Pois, sua análise prossegue, “teorias do reconhecimento são normalmente fundadas em teorias da socialização e da individuação. Elas pedem uma certa antropologia no mais das vezes marcada pela reflexão sobre processos de maturação em direção à pessoa individualizada, de ontogênese das capacidades prático-cognitivas e de constituição do Eu autônomo”. Levando em conta Jacques Lacan, Safatle mostra que tem-se “uma visão distinta não apenas da dinâmica de socialização dos desejos e pulsões, mas das consequências políticas do conceito de reconhecimento. Pois tal reflexão pode fornecer uma base empírica e material para a ideia de que sujeitos procuram ser reconhecidos em um campo político fora dos processos culturais de produção de identidades”.

O livro contém prefácio do renomado psicanalista Marcus Coelen.

A Cosacnaify disponibiliza um trecho para visualização.

 

__________

Trecho:

Normalmente, acreditamos que uma teoria dos afetos não contribui para o esclarecimento da natureza dos impasses dos vínculos sociopolíticos. Aceitamos que a dimensão dos afetos diz respeito à vida individual dos sujeitos, enquanto a compreensão dos problemas ligados aos vínculos sociais exigiria uma perspectiva diferente, capaz de descrever o funcionamento estrutural da sociedade e de suas esferas de valores. Os afetos nos remeteriam a sistemas individuais de fantasias e crenças, o que impossibilitaria a compreensão da vida social como sistema de regras e normas.

Tal distinção não seria só uma realidade de fato mas uma necessidade de direito. Pois, quando os afetos entram na cena política, eles só poderiam implicar a impossibilidade de orientar a conduta a partir de julgamentos racionais, universalizáveis por serem baseados na procura do melhor argumento.

No entanto, um dos pontos mais ricos da experiência intelectual de Sigmund Freud é a insistência na possibilidade de ultrapassar tal dicotomia. Freud não cansa de nos mostrar quão fundamental é uma reflexão sobre os afetos, no sentido de uma consideração sistemática sobre a maneira como a vida social e a experiência política produzem e mobilizam afetos que funcionarão como base de sustentação geral para a adesão social. Maneira de lembrar a necessidade de desenvolver uma reflexão social que parta da perspectiva dos indivíduos, não se contentando com a acusação de “psicologismo” ou com descrições sistêmico-funcionais da vida social.

O que não poderia ser diferente para alguém que insistia em afirmar: “Mesmo a sociologia, que trata do comportamento dos homens em sociedade, não pode ser nada mais que psicologia aplicada. Em última instância, só há duas ciências, a psicologia, pura e aplicada, e a ciência da natureza”.

Mas, em vez de ver sujeitos como agentes maximizadores de utilidade ou como mera expressão calculadora de deliberações racionais, Freud prefere compreender a forma como indivíduos produzem crenças, desejos e interesses a partir de certos circuitos de afetos quando justificam, para si mesmos, a necessidade de aquiescer à norma, adotando tipos de comportamentos e recusando repetidamente outros.

A perspectiva freudiana não é, no entanto, apenas a expressão de um desejo de descrever fenômenos sociais a partir da intelecção de seus afetos. Freud quer também compreender como afetos são produzidos e mobilizados para bloquear o que normalmente chamaríamos de “expectativas emancipatórias”. Pois a vida psíquica que conhecemos, com suas modalidades de conflitos, sofrimentos e desejos, é uma produção de modos de circuito de afetos.

Por outro lado, a própria noção de “afeto” é indissociável de uma dinâmica de imbricação que descreve a alteração produzida por algo que parece vir do exterior e que nem sempre é constituído como objeto da consciência representacional. Por isso, ela é a base para a compreensão tanto das formas de instauração sensível da vida psíquica quanto da natureza social de tal instauração. Fato que nos mostra como, desde a origem, “o ‘socius’ está presente no Eu”. Ser afetado é instaurar a vida psíquica através da forma mais elementar de sociabilidade, essa sociabilidade que passa pela “aiesthesis” e que, em sua dimensão mais importante, constrói vínculos inconscientes.

Tal capacidade instauradora da afecção tem consequências políticas maiores. Pois tanto a superação dos conflitos psíquicos quanto a possibilidade de experiências políticas de emancipação pedem a consolidação de um impulso em direção à mutação dos afetos, impulso em direção à capacidade de ser afetado de outra forma. […]

 

[Trecho divulgado pelo caderno Ilustríssima, do jornal Folha de São Paulo]

_____________

safatle

 

 

O CIRCUITO DOS AFETOS

Autor: Vladimir Safatle
Editora: Cosacnaify
Preço: R$ 41,93 (512 págs.)

 

 

 

 

Send to Kindle

Comentários