O interessante livro A alma do mundo, do uruguaio Felipe Polleri, percorre o diálogo entre um paciente e sua psiquiatra.
Através da exploração das complexas entranhas do inconsciente, em que coabitam os limites da loucura e da reflexão. Concebido quase como uma obra teatral, o interrogatório psiquiátrico esmiúça uma mente angustiada de um personagem em que coabitam mundo paralelos, radicalmente antagônicos.
Uma peça literária ousada e original, que mostra como coabitam os antagonismos da fantasia e do realismo na peculiar captação do mundo de cada subjetividade.
Na novela, a médica procura investigar o paradeiro de Elsa, a companheira de seu paciente que desapareceu; o paciente, procura fazê-la compreender o Deus Árvore. O real e o onírico se fundem não apenas na narrativa, mas em intervenções de figuras na própria mancha do texto, como que saltadas da cabeça do paciente para o papel.
Uma bela fábula moderna, que oscila, por este atormentado e profundo protagonista, entre um racionalismo discursivo que amalgama a análise de sujeito e objeto, e uma compreensão alucinada do reencantamento de um mundo sem divindades.
O livro, bilíngue, integra a coleção “Boca a boca”, feita em parceria entre a editora Grua e a uruguaia Yaugurú, de Montevidéu, dedicada a aprofundar a relação literária entre ambos os países. Outros títulos que integrama coleção são As Hortensias, de Felisberto Hernández, Torquator, de Henry Trujillo, Mudança, de Fernando Cabrera, todos em edição bilíngue. A tradução do espanhol foi financiada pela Biblioteca Nacional brasileira.
Felipe Polleri (Montevidéu, 1953) indicou para si mesmo a definição de um “esquisitão” de feroz neoexpressionismo. Desde 2003 trabalha como jornalista no suplemento El País Cultural.
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Trecho:
Paciente — Devo falar?
Doutora — O senhor quer falar?
Paciente — Gostaria de falar das árvores. Numa época, eu adorava ao Deus Árvore. Ele se encontra… em certa floresta. Eu era feliz adorando ele. Mas cortaram-no.
Doutora — Quem?
Paciente — Todos. Odeiam as árvores, e cortam elas. Ou, pior ainda, as deixam vazias. A senhora já andou pela cidade?
Doutora — Quando vinha para cá.
Paciente — Ouviu as árvores? Estão caladas. Já não há nenhum pássaro nas árvores desta cidade. Foram para o céu. Deus terá que pôr espantalhos nas nuvens para que elas voltem. E fazer o milagre dos milagres para que cantem. Já ninguém tem vontade de cantar nesta floresta destroçada.
Doutora — Na cidade? A cidade é uma floresta destroçada?
Paciente — Eu gostava da floresta. Não tinha nenhuma pessoa. Nada humano com que se comparar. A floresta virgem… Às vezes, não sabia se tinha me convertido num anão ou num gigante. Caminhava devagar: poderia ter uma cidade debaixo de uma folha seca.
Doutora — Prefere as árvores às pessoas?
Paciente — Andava sempre nu. Pintava a máscara de amarelo e os pés de azul e as mãos de vermelho. A gente vivia para o Deus Árvore. Tudo era simples e verdadeiro, como o fogo. Não gosto de ver o fogo prisioneiro numa caixa de metal. Parece que tudo tem que ser sempre colocado em caixas.
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Autor: Felipe Polleri
Editora: Grua
Preço: R$ 34,30 (144 págs.)