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O tempo vazio 

13 janeiro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

fotografia de Nuno Ramos

Em O tempo e o cão – a atualidade das depressões, a psicanalista Maria Rita Kehl investiga uma hipótese: a de que a depressão seja um sintoma social contemporâneo. O livro, que ganhou o Prêmio Jabuti de 2010, ao longo de seus três ensaios analisa a relação subjetiva da depressão com o tempo e com a temporalidade, dialogando com conceitos filosóficos de Henry Bergson e Walter Benjamin.

O texto de Kehl é acessível, profundo e pertinente. Segundo a autora, “Freud privatizou o conceito de melancolia; seu antigo lugar de sintoma social retornou sob o nome de depressão”. Para ela, o atual aumento das depressões demonstra-se sintoma social, uma vez que, em desacordo com a normatividade social, denuncia as contradições de uma época.

Para analisar os depressivos em relação ao discurso social, Maria Rita Kehl pormenoriza alguns desdobramentos práticos de aspectos das condições de manutenção desse discurso, como a relação de urgência e produtividade com o tempo, a fragmentação da experiência narrativa, a efemeridade das vivências, o consumismo, o enaltecimento da fantasia de autoengendramento e desvinculação com as gerações antepassadas. 

A autora partiu de experiências clínicas para pensar a depressão como sintoma social: “Tenho constatado em minha prática analítica que aquilo que chamamos, sem grande precisão, de depressão, seja um quadro mais próximo da clínica das neuroses do que das psicoses. Quando um psicanalista ou um psiquiatra referem-se a uma depressão psicótica ou “endógena” é bem provável que se refiram a uma melancolia, não a uma depressão. Isto vale inclusive para as depressões consideradas crônicas, que também podem ser, senão curadas, ao menos tratadas com os recursos da psicanálise. As depressões participam das estruturas neuróticas, mas é preciso tentar compreender sua singularidade. Não se confundem com estados de ânimo tais como tristeza, abatimento, desânimo, inapetência para a vida, embora todos estes participem também do sofrimento do depressivo. Por outro lado, também não se confundem com as ocorrências depressivas esporádicas a que todo neurótico está sujeito em razão de perdas, fracassos ou lutos mal elaborados.  

“Na clínica psicanalítica recebemos com freqüência pessoas que se queixam de não terem jamais experimentado, tanto quanto sejam capazes de se lembrar, outro modo de estar no mundo que não seja a depressão, com raros intervalos de alívio passageiro. O tipo de endereçamento transferencial de suas interrogações frente ao analista nos leva a concluir que estas pessoas sejam neuróticas; mas o sentimento de vazio que os abate, a lentidão mental e corporal, o abatimento profundo em que se encontram, exigem um pouco mais de cautela em sua avaliação. A questão que se coloca é: o que acontece, na origem de certas entradas na neurose, que abate o sujeito de uma forma tão avassaladora desde muito cedo?”.

Porém, o que concatenou sua reflexão sobre a depressão com a questão da experiência do tempo foi um acontecimento pessoal, o atropelamento de um cão na Via Dutra: “Se o projeto deste livro se deve ao inicio de algumas analises com pessoas depressivas, o processo mental de sua escrita se inaugurou no dia em que atropelei um cachorro. Foi um acidente anunciado, com poucos segundos de antecipação, e mesmo assim inevitável por conta da velocidade normal dos acontecimentos, na atualidade. Mal nos damos conta dela, a banal velocidade da vida, até que algum mau encontro venha revelar sua face mortífera”. A velocidade que rege a vida contemporânea é alheia aos sujeitos deprimidos, que talvez, então, sofram “de um sentimento de tempo estagnado, desajustados do tempo sôfrego do mundo capitalista”.

Em entrevista concedida a Luiz Zanin, para o Estado de São Paulo, a autora disse: “[…] o incidente na estrada me fez pensar nos efeitos subjetivos da aceleração da vida contemporânea. Na época andava lendo Benjamin, para quem a atividade contínua de “aparar os choques” da vida moderna (repare que ele escrevia sobre Paris no final do 19) é incompatível com a dimensão da experiência e está entre as causas do que ele chama de melancolia. Comecei a pensar no livro por aí”. Falando sobre a aceleração do tempo contemporâneo, Kehl analisou: “não é o tempo que acelera, somos nós. Aliás, o que é o tempo? A leitura de Henri Bergson me foi de grande valia para pensar nessa questão. A impressão que se tem, desde a revolução industrial, é que o tempo em sua dimensão cronológica vem se acelerando de uma forma exasperante. Quanto mais tentamos aproveitar o tempo, quanto mais dispomos das horas e dos dias segundo a convicção de que “tempo é dinheiro”, mais sofremos do sentimento de desperdiçar a vida”. Sobre a crítica ao capitalismo que as análise psicopatológica agrega, na mesma entrevista, a autora pontuou: “penso que a produção do pensamento crítico é um importante dispositivo contra o conformismo, o sentimento fatalista de que está “tudo dominado”, de que o capitalismo conseguiu anular todas as visões de mundo diferentes dele. A crítica é um “veneno antimelancolia”, no sentido benjaminiano da “indolência do coração” que caracteriza a atitude fatalista”.

Eliane Brum, em artigo sobre o livro publicado em sua antiga coluna na revista Época, interpreta: “O depressivo não apenas sofre, mas silencia num mundo em que as pessoas preenchem todos os espaços com sua voz. E não apenas silencia, mas em vez de preencher seu tempo com dezenas de tarefas, uma agenda cheia, se amontoa no sofá da sala e nada quer fazer. Não só é lento, como chega a ser imóvel. Sua mera existência nega todos os valores propagandeados dia após dia ao redor de nós – e também pelo nosso próprio discurso afirmativo e de auto-convencimento. Ao existir, o depressivo faz uma resistência política passiva ao establishment. Obviamente, ele não é um ativista nem tem consciência disso e preferiria não sofrer tanto. O que Maria Rita nos propõe é enxergar a depressão para além dos aspectos clínicos. Enxergar também como sintoma da sociedade em que vivemos. Como a ótima psicanalista que é, o que ela nos propõe é ouvir. Neste caso, ouvir o que a depressão tem a nos dizer quando escutada como sintoma social, como expressão de um mal-estar no mundo. […] Maria Rita sugere que vale a pena para todos – e não apenas para os depressivos – pensar o que a depressão está nos dizendo sobre nosso mundo”. 

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Trecho:

“A via do entendimento psicanalítico parte sempre da investigação clínica, na qual as formações do inconsciente se expressam na singularidade de cada sujeito; mas a experiência clínica pode também, seguindo o exemplo de Freud, contribuir para esclarecer o sofrimento que se expressa através dos sintomas da vida social. A direção da construção da teoria vai do particular para o social, nunca o contrário. Nos consultórios, tratemos nossos depressivos um a um, a partir dos pressupostos da psicanálise. A partir daí, talvez possamos escutar também o que eles têm a nos ensinar a respeito das formas contemporâneas do mal-estar, das quais eles não estão – como nenhum ser falante, aliás – excluídos.”

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O TEMPO E O CÃO

Autor: Maria Rita Kehl
Editora: Boitempo
Preço: R$ 30,10 (304 págs.)

 

 

 

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