Iuri Tyniánov [1894 – 1943] é conhecido sobretudo por seu estudo da teoria poética, trabalho vinculado ao formalismo russo. Ocupou-se da natureza do verso, da noção de história literária, do nascimento da poesia russa moderna a partir do conflito entre arcaizantes e inovadores.
Suas incursões na prosa de ficção, porém, são igualmente bem sucedidas.
O tenente Quetange, traduzido para o português por Aurora Bernardini, é uma sátira do autoritarismo e de sua burocracia.
O improvável patronímico é fruto de um emprego equivocado de um clichê da burocracia russa, a expressão “que tange”. A edição brasileira, publicada pela Cosac Naify, conta ainda com prefácio de Boris Schnaiderman.
O Tenente Quetange era uma personagem anedótica histórica à época do czar Pavel I . No livro, Tyniánov apropria-se do folclore criando uma crítica satírica à paradoxal burocracia russa: Quetange é um oficial inexistente, que, no entando, surge nos documentos oficiais, obra de um erro de um escrivão.
Gustavo Bernardo, professor de Teoria da Literatura na UERJ, no artigo “Conhecimento e metáfora”, analisando a ambivalência epistemológica da metáfora, que ora liquefaz o sentido, ora torna-se arma contra a liquefação do sentido – então, inaugurando significados em meio aos sentidos reificados –, pontua: “Para definir a metáfora, Ortega y Gasset recorre, como não poderia deixar de ser, à metáfora – no caso, às metáforas combinadas de Deus e do cirurgião distraído, para chegar ao símile geográfico dos recifes imaginários, ou das ilhas sutis. O leitor atento percebe a oscilação; talvez, uma contradição: ora se deve resistir às metáforas porque elas liquefazem o sentido, ora as metáforas se tornam armas contra a liquefação do sentido e inauguram significados no meio de sentidos reificados”. O professor sustenta que, para devolver à metáfora seu poder “transformador e renovador, pode-se levá-la a sério ‘demais’, isto é, ao pé da letra – ‘pé’ que, por sua vez, é outra metáfora. Encontramos um excelente exemplo de metáfora levada ao pé da letra no divertido romance O tenente Quetange, de Iúri Tyniánov. O romance começa no momento em que um escrivão do Imperador, em vez de escrever na ordem-do-dia ‘a nomeação para tenentes que tange a Stíven, Rybin e Azantchéiev foi determinada’, escreve: ‘a nomeação para tenentes Quetange, Stíven, Rybin e Azantchéiev foi determinada’. A tradução do russo para o português mantém o efeito cômico: a expressão oracional ‘que tange’ se torna o nome próprio ‘Quetange’. Como o Imperador assina a ordem-do-dia, ela deve ser cumprida, no entanto a ordem simplesmente não pode ser cumprida porque, afinal de contas, não existe no regimento nenhum tenente Quetange. Sem saber o que fazer, o comandante leva o problema ao assustado ajudante do Imperador; o ajudante do Imperador, também sem saber o que fazer, acaba determinando que o Comandante considere como existente o tenente Quetange, designando-o para a guarda. Mais tarde, acusado de um delito que ninguém sabia a quem acusar, o inexistente tenente Quetange é condenado a receber sete chibatadas – os soldados, constrangidos, aplicam as chicotadas na madeira do cavalete destinado a esse fim e, depois, escoltam o degredado à Sibéria: ‘E lá se foram eles pela rua, fuzil no ombro, afastando-se do regimento a passos regulares, lançando de vez em quando um olhar de esguelha, não um para o outro, mas para o intervalo entre ambos’. Essa descrição do movimento constrangido dos soldados é, mais do que hilária, emblemática da potência paradoxal da metáfora.
“Depois de vários episódios patéticos, o tenente Quetange é perdoado e retorna ao Regimento, sendo promovido a capitão e depois a coronel. Como o coronel Quetange não pedia terras, não vivia atrás de favores, não adulava nem lisonjeava ninguém, rapidamente é alçado ao posto de general. Informado do seu ilibado caráter, o Imperador manifesta o desejo de falar com ele, mas lhe informam que o general se encontra gravemente enfermo. O Imperador ordena que o internem e o curem: ‘na grande enfermaria, a portas fortemente fechadas, os médicos não sabiam o que fazer, tremiam como os doentes’. Finalmente, eles encontram a solução: o general Quetange falece. Os funerais impressionam São Petersburgo. Suas condecorações são levadas em almofadas, num cortejo. O Imperador lamenta: ‘Morrem-me os melhores homens’. Além da divertida expressão ‘morrem-me’, lógica para um Imperador que se considera no centro do universo, podemos aproveitar a sua fala para acrescentar uma moral à história de Tyniánov e a este artigo: os melhores homens são apenas metáforas”.
Em entrevista à revista Kalinka, a tradutora Aurora Bernardini, questionada sobre “o grande legado dos formalistas russos”, desde representantes como Eikhenbaum, Jakobson, Propp e Tyniánov, até cerca de 1930, quando foi publicamente condenado na Rússia, sintetizou: “Terem proposto estudar as diferenças entre um texto qualquer e um texto artístico e terem chegado objetivamente, pela descoberta & análise de uma série de procedimentos, a definir o que vem a ser a tão mal traduzida literaturnost”. Sobre suas escolhas de tradução, que recaem sobre autores russos não clássicos, como Velímir Khliébnikov [Ka, Perspectiva, 1977], Iúri Tyniánov [Tenente Quetange, CosacNaify, 2002] e Isaac Bábel [Maria, uma peça e cinco histórias, Cosac Naify, 2003 e Exército da Cavalaria, Cosac Naify, 2005], Bernardini disse: “As novas experiências estéticas são apaixonantes, mas eu também começo por procurar no velho as sementes do novo”.
Além do conto O tenente Quetange – cujo enredo originou um filme, em 1934, com trilha sonora de Prokófiev – Tyniánov publicou dois romances históricos, que fizeram enorme sucesso na Rússia: Kiúkhlia, publicado em 1925, e A morte de Vazir-Mukhtar, em 1928, ambos sobre companheiros de geração do poeta Aleksandr Púchkin, de quem era grande admirador.
Autor: Iuri Tyniánov
Editora: Cosac Naify
Preço: R$ 30,10 (96 págs.)