Crítica Literária

O tempo que paira em sonho

7 abril, 2014 | Por Isabela Gaglianone

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“[…] com um pedaço de mim mesmo, formei a sentinela que faz a guarda de minhas recordações e de meus pensamentos; mas ao mesmo tempo devo vigiar a sentinela para que ela não se entretenha com o relato das recordações e adormeça. E ainda tenho que lhe emprestar meus próprios olhos, meus olhos de agora”.

Há uma vida que se vive e uma vida que se sonha. A literatura de Felisberto Hernández, porém, brota de um estranho entroncamento entre ambas: suas histórias são memórias de sonhos. Deixam entreaberta a divisória entre o fantástico e o real e, ao atravessarem-na, a transformam numa mera suposição, difusa e ambígua. Talvez por isso Felisberto seja um escritor tão diferente – segundo Italo Calvino, “um escritor que não se parece com nenhum outro: com nenhum europeu e com nenhum latino-americano; é um franco-atirador que desafia toda classificação ou rótulo, mas que se mostra inconfundível ao abrirmos qualquer uma de suas páginas”. Sua literatura desenrola-se com suavidade onírica e um lirismo singelo. Sua prosa é simples, intelectual e intimista e tem um tom a um só tempo melancólico e humorado. Suas histórias resgatam e resguardam todo o esplendor das reminiscências, o conhecimento da origem e do retorno que provém da memória, dos sonhos e dos ricos encontros entre ambos.

Seus personagens são suas lembranças. Os contos são escritos em primeira pessoa, um personagem que é, ao longo das histórias, uma variação sobre um mesmo tema, quase sempre um pianista escritor, as modulações temporais e espaciais, principalmente, dão a tônica lúdica das narrativas; memórias, imiscuídas à imaginação, formam a autobiografia de um duplo – “Eu era um lugar provisório” (p. 156) –, de uma subjetividade um pouco alheia a si, num universo deslocado da realidade pragmática.

E foi numa noite que despertei angustiado que me dei conta de que não estava só no meu quarto: o outro seria um amigo. Talvez não fosse exatamente um amigo: podia ser muito bem um sócio. Eu sentia a angústia de quem descobre que sem saber esteve trabalhando em sociedade com outro e que foi o outro quem se encarregou de tudo. Não era preciso ir buscar provas: elas vinham escondidas atrás das suspeitas como vultos atrás de um pano; invadiam o presente, tomavam todas as suas posições e eu pensava que tinha sido ele, meu sócio, quem havia se entendido por sobre o meu ombro com minhas próprias lembranças, e pretendia especular com elas: foi ele quem escreveu a narração” (pp. 42, 43).

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A figura do outro, do duplo, perpassa os contos de O cavalo perdido e outras histórias, desdobrada de maneira literal, literária e metafórica. Encontra-se nas relações, que são como espelhos paralelos, existentes entre personagem e autor – um outro eu –, entre o que é real e o que é imaginado, ou sonhado – o sonho como outra realidade, não somente em potência, mas coexistente à realidade atual –, entre passado e futuro – outro tempo, uma abertura que permite o acesso, pela memória, ao passado no presente e que, pela maturidade, vê o passado com “os olhos de agora”, ultrapassa a nostalgia e revive-o. O outro também permeia a relação da subjetividade com o mundo – outros seres, objetos, com as frustrações –, e sua ambiguidade é misturar um sentimento de alheamento ao empírico à interiorização de alguns seus elementos: como um cavalo perdido na cidade, num passeio ao léu que não distingue o espelhamento dúbio entre imaginação e entendimento.

Essa figura do outro é um dos mais bonitos desdobramentos da literatura de Felisberto Hernández, capaz de apontar os caminhos escondidos do sonho na vida e vice-versa. A possibilidade de reversão da fórmula – o sonho na vida, a vida no sonho – é a base harmônica que encaminha os sonhos, nas suas histórias, a mostrarem-se duplos da realidade – e não interrupções intermitentes diárias. Uma expressão profundamente lírica é o inconformismo desiludido de “A casa inundada”:

“[…] dona Margarita disse estas mesmas palavras: ‘um pensamento que agora não importa mencionar’, e, depois de um longo pigarro, ‘um pensamento confuso e como que desfeito de tanto ser espremido. Começou a fundar lentamente, e deixei-o repousar. Dele nasceram reflexões que meus olhares extraíram da água e encheram meus olhos e minha alma. Então soube, pela primeira vez, que é preciso cultivar as recordações na água, que a água elabora o que nela se reflete e o pensamento recebe. Em caso de desespero, não se pode entregar o corpo à água; é preciso entregar-lhe o pensamento; ela penetra nele e ele nos muda o sentido da vida’. Foram essas, aproximadamente, as palavras dela” (pp. 150, 151).

Dona Margarita decidiu cultivar suas recordações na água, simbolização lúdica do silêncio dos sonhos, da desesperança do luto eterno.

É como outro também que os personagens lidam com desilusões e fantasias. O viajante a um passado histórico longínquo, o lanterninha de teatro que desenvolve uma anomalia e começa a enxergar no escuro: um outro no mesmo, desdobramento irônico, melancólico ou cômico, ou tragicômico, como o pianista que acaba por se tornar vendedor de meias, e chora. É no espelhamento de si em um outro que não sai de si que os passados são revisitados, num tempo que, como em sonhos, não diferencia pretéritos ou futuros. Como diz o crítico Davi Arrigucci Jr. no texto de posfácio à edição brasileira, o que Felisberto cria é uma “ficção da consciência crítica vigilante e por vezes intrusa”, “jogos entre o eu e o outro” (p. 218).

Naquela noite, depois de um tempo deitado, abri as pálpebras e a escuridão me deixou os olhos vazios. Mas ali mesmo começaram a se levantar esqueletos de pensamentos – não sei que vermes teriam comido sua ternura. E enquanto isso, a mim me parecia que eu ia abrindo, com a mais preguiçosa lentidão, um guarda-chuva sem pano” (p. 58).

A expressão espontânea, próxima à linguagem falada, amalgama simplicidade e uma intelectualidade desinteressada. Conjugada a ela, a introspecção das histórias transforma o mundo num caleidoscópio de fragmentos simbólicos – a movimentação de significados, deslocados, é bonita, cria imagens profundamente interessantes e faz com que paire, em sua própria atmosfera, os sentimentos que expressa, as desilusões, tão sinceras quanto melancólicas. Os objetos ganham qualidades inusitadas entre jogos de semelhanças e diferenças múltiplas: as pernas das cadeiras são metáfora da sensualidade descoberta pelo jovem, o piano solitário no teatro tem o silêncio como expectador.

O teatro onde eu dava os concertos também tinha pouca gente, e o silêncio o havia invadido: via-o aumentar na grande tampa negra do piano. O silêncio gostava de escutar a música; ouvia até a última ressonância e depois ficava pensando no que tinha escutado. Suas opiniões tardavam. Mas quando já era de confiança, o silêncio intervinha na música: passava entre os sons como um gato com sua grande cauda negra e os deixava cheios de intenções” (p. 75).

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Os objetos transitam entre registros sensoriais e ideais diferentes. Como notas musicais, cuja sensação despertada transforma-se quando tocadas juntas em acordes, os elementos nas histórias imiscuem-se uns aos outros modificando-se mutuamente, ressoando imagens que revertem seus conceitos. A relação com os objetos, por um lado, é a forma solitária de relação com o mundo físico, contraponto ao mundo dos sonhos em que as histórias estão imersas, são um eco distorcido. Por outro lado, os objetos, vistos de maneira poética, de um desinteresse prático e um profundo interesse simbólico, mágico, guardam tempos remotos.

A qualificação “fantástica” à literatura de Felisberto Hernández não basta. Suas histórias não são somente fantásticas. Seu universo onírico também é comumente associado ao surrealismo. Definições, porém, escapam. O universo lúdico inventado pelo uruguaio é profundamente solitário. Inclusive na sua relação com o mundo: eco retumbante em si mesmo criado pelos deslizamentos poéticos das imagens, que funcionam, porém, em perfeita ordem dentro de sua coerência e unidade – uma construção submersa indiferente a qualquer tempestade. Seus contos não relacionam-se com um mundo ideal, tateiam a realidade com a postura de um empirismo sensual, experimental, cuja apreensão, porém, desloca os significados imediatos, articulando chaves de sentidos, como as descobertas de uma criança; seu realismo é mágico. É imerso numa introspecção que vai ao mundo e imediatamente volta a si, um conhecimento do outro que reverte-se no conhecimento de si mesmo.

Segundo Davi Arrigucci, Felisberto cria um mundo “estranho, povoado de esquisitices […], mais do que fantástico, no sentido estrito do termo. O fantástico como que jaz à espera, feito a miragem de uma intuição: no horizonte de expectativa das miúdas excentricidades que ocupam o primeiro plano narrativo, desviando-nos dos fins últimos ou, pelo menos, retardando nossa visada do fundo do quadro, ele paira como uma inquietante possibilidade” (p. 221). Fantástico, onírico surreal, autobiográfico: sua literatura extrapola todas as classificações prolongando-se por entre todas ao mesmo tempo. Enigmática natureza de ressonâncias da memória que é parente do infinito.

Numa região de fonte e de origem em que mesmo a música desaparece, a poética de Felisberto é uma reverberação do tempo das reminiscências. Intimista, ele constrói o seu universo a partir do contato com as coisas e na também no inverso possível, espelhado, da transformação das coisas em parte de sua visão de mundo: poesia que transborda para as coisas e as transforma em parte de si, num infinito desdobramento.

Num dado momento, penso que num canto de mim nascerá uma planta. Começo a rondá-la, achando que nesse canto se produziu alguma coisa rara, mas que poderia ter futuro artístico. Eu estaria feliz se essa ideia não fracassasse de todo. Contudo, devo esperar um tempo ignorado: não sei como fazer a planta germinar, nem como favorecer seu crescimento, nem como cuidar dela: só pressinto ou desejo que tenha folhas de poesia; ou algo que se transforme em poesia se certos olhos olharem para ela” (de “Explicação falsa dos meus contos”, p. 211).     

Felisberto, segundo Davi Arrigucci, cria um “palco dramático da subjetividade”, em que “a curiosidade indiscreta é a expressão desse processo profundo de autoconhecimento, que é também um modo de apreensão do mundo de outra perspectiva” (pp. 224 e 226). A análise feita no posfácio valoriza o método original de sua composição literária, essa rara invenção de uma forma que mistura a consciência madura à infantil aproximação do desconhecido, que, por outro lado, equilibra a invenção e a memória. O crítico, nesse ponto, sugere uma aproximação entre Felisberto e Proust:

Antes de mais nada, Felisberto é um memorialista, um memorialista proustiano – Em busca do tempo perdido é dos poucos livros que seus contemporâneos afirmam tê-lo visto ler –, que retorna o tempo todo a algumas cenas e situações de sua experiência infantil, vista muitas vezes numa atmosfera de sonho ou devaneio através da qual ele vai desvelando o passado […]. Refaz então as relações entre os seres e os objetos transformados nesse outro universo que vai se tornando concreto e presente feito a matriz ou espaço inaugural onde raia um conhecimento nascente” (pp. 225, 226).

Podemos estender a comparação entre os dois escritores, deslocando para Felisberto um comentário de Blanchot sobre Proust, pensando uma aproximação entre eles pela representação da reminiscência lúdica do passado no presente:

Toda a ambiguidade vem da ambiguidade do tempo que aqui se introduz, e que permite dizer e experimentar que a imagem fascinante da experiência está, em certo momento, presente, ao passo que essa experiência não pertence a nenhum presente e até destrói o presente em que parece introduzir-se” (in: O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes).

Trata-se, segundo Blanchot, de “uma distância imaginária em que a ausência se realiza e ao termo do qual o acontecimento apenas começa a ocorrer”, um movimento infinito que não torna o acontecimento presente, mas que abre-se no afastamento necessário que acompanha o momento em que se afirma, o encontro infinito do passado com o presente que nasce da palavra que a pronuncia (pp. 12, 13).

Na literatura de Felisberto Hernández, o próprio tempo exterioriza-se na interioridade fantástica desnovelada por uma comunicação que não é a do presente ou do passado, mas de uma união que a imaginação cria entre um e outro. Trata-se da coincidência, num ponto fabuloso, do tempo que foi com o tempo que se vive e com o tempo que paira em sonho.

Eu mesmo, com meus olhos de agora, não a recordo: recordo os olhos que naquele tempo a olhavam, aqueles olhos transmitem a estes suas imagens; e também transmitem o sentimento em que as imagens se movem” (p. 44).

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