Sangue no olho, da chilena Lina Meruane, narra em primeira pessoa a história de uma mulher em vias de ficar cega. À narradora protagonista, vítima de uma desconhecida doença que enche seus olhos de sangue, resta apenas esperar, enquanto seu médico a submete a extenuantes exames sem, contudo, chegar a nenhum diagnóstico.
O romance é forte. A narradora, para seguir seu ofício de escritora, para movimentar-se pelas cidades, deve a partir de então contar com as imagens do mundo que permanecem em sua imaginação e em sua memória; com o aguçamento de sua audição. A perda drástica e súbita de um sentido é violenta e tona a ordem do mundo, instável. Os espaços tornam-se vivos, a trama do tempo se rarefaz, as palavras deixam de fingir serem as coisas que enunciam, desnudam-se enquanto signos vazios e arbitrários.
Enquanto espera por uma definição do médico, a protagonista, Lucina, passa a viver entre Nova York e Santiago do Chile. No contraponto que fazem as duas cidades, suas relações pessoais também transfiguram-se.
Lina Meruane é considerada por Roberto Bolaño uma das maiores promessas literárias do Chile. Este é o seu romance de estreia no Brasil.
A tradução foi feita por Josely Vianna Baptista e o volume conta com texto de orelha de Juan Pablo Villalobos, para quem “Sangue no olho pertence a uma rica tradição de literatura da cegueira […]. Escrito com o ritmo implacável de um thriller, em que cada diagnóstico adquire a força de um clímax”. O escritor pontua: “Enquanto suporta a incerteza dos prognósticos médicos, enquanto espera um diagnóstico definitivo, enquanto sonha com um tratamento que a resgate da escuridão, ela ouve compulsivamente audiobooks e, nessa solidão acompanhada a que estão condenados todos os doentes, tem que redescobrir o mundo. Redescobrir o mundo, de fato, é um eufemismo quando comparado a uma verdade que Lucina enuncia de maneira crua: “Tenho que aprender a estar cega”. O fruto dessa aprendizagem é, justamente, este romance”. Segundo Villalobos, à narradora, o mundo sensível está vedado: “Apesar disso, ou graças a isso, ela nos oferece os contornos de uma Nova York e uma Santiago tenebrosas, como a paisagem de algo que um dia foi e ainda não se sabe se voltará a ser”.
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Estava acontecendo. Naquele momento. Fazia tempo que tinham me avisado e, no entanto. Fiquei paralisada, as mãos molhadas de suor empunhando o ar. As pessoas na sala prosseguiam com suas conversas e gargalhadas, até sussurrando exageravam, enquanto eu. E alguém gritava mais alto que os outros, baixem o volume do rádio, não façam tanta bagunça que à meia-noite em ponto os vizinhos vão chamar a polícia. Me concentrei naquela voz estrondosa que parecia não cansar de insistir que mesmo aos sábados os vizinhos iam dormir cedo. Aqueles gringos não eram gente de passar noites em claro como nós, não eram dados a farras, de jeito nenhum. Eram protestantes e protestariam se não os deixássemos dormir em paz. Do outro lado das paredes, sobre nossos corpos e também sob nossos pés, agitavam-se todos aqueles gringos acostumados a madrugar já com a meia no pé e os cadarços amarrados. Gringos que, com a roupa de baixo impecável e a cara engomada, sentam-se toda manhã para comer seu cereal com leite frio. Mas ninguém ligava para aqueles que não conseguiam pregar os olhos, para suas cabeças afundadas sob os travesseiros, para suas gargantas atulhadas de comprimidos que não lhes trariam nenhum alívio se continuássemos sapateando em seu descanso. Sapateando eles, lá na sala. Eu não. Eu fiquei agachada no quarto, com o braço estendido para o chão. E de repente me peguei pensando na insuportável vigília dos vizinhos, imaginando que iam apagar as luzes depois de enfiar tampões ressecados nos ouvidos; que os empurrariam com tanta força que o silicone acabaria estourando. Pensei que preferia ser eu a ter os tampões arrebentados, ser eu a ter os tímpanos trepanados por seus estilhaços. Queria ser a velha que cobre firmemente as pálpebras com a máscara, para tirá-la em seguida e acender a luz. Queria isso porque minha mão ainda suspensa não encontrava nada. Só gargalhadas etílicas atravessando as paredes e me salpicando com sua saliva. Só a voz estridente da Manuela dizendo sem parar por cima da gritaria, pô, galera, um pouco de silêncio! Não, por favor, não, pensei, continuem falando, continuem vociferando, uivem, soltem grunhidos se for preciso. Morram de rir. Eu dizia isso a mim mesma com o corpo todo tenso, embora poucos segundos tivessem se passado. Tinha acabado de entrar no quarto de casal, acabado de me inclinar, eu, em busca da minha bolsa e da seringa. Precisava me injetar à meia-noite em ponto, mas não ia conseguir, porque o precário equilíbrio dos casacos derrubou minha bolsa no chão, porque em vez de parar cuidadosamente, como devia, eu me dobrei e estiquei o braço para apanhá-la. Foi então que um fogo de artifício atravessou minha cabeça. Só que o que eu via não era fogo e sim sangue vertendo dentro do meu olho. O sangue mais espantosamente belo que já vi na vida. O mais incrível. O mais assombroso. Fluía aos borbotões, mas só eu podia percebê-lo. Vi com absoluta clareza como o sangue se adensava, vi que a pressão aumentava, vi que estava atordoada, vi que meu estômago revirava, que sentia ânsia de vômito e, no entanto. Não me levantei nem me movi um milímetro, nem mesmo tentei respirar enquanto observava o espetáculo. Porque essa era a última coisa que eu veria, naquela noite, com esse olho: um sangue intensamente negro.
[Trecho divulgado pelo caderno Ilustríssima, da Folha de São Paulo]
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Autor: Lina Meruane
Editora: Cosac Naify
Preço: R$ 24,43 (192 págs.)