Enrique Vila-Matas foi convidado a participar da Documenta, maior exposição de arte contemporânea do mundo contemporâneo, realizada a cada cinco anos na cidade de Kassel, na Alemanha. O escritor deveria realizar uma performance: sentaria à mesa em um restaurante chinês nas cercanias da cidade e escreveria – diante dos comensais, que poderiam aproximar-se e mesmo intervir.
Não há lugar para a lógica em Kassel surge assim, conforme o próprio autor define, como uma “reportagem romanceada” – uma mistura de diário de viagem que conta sua experiência, com uma profunda reflexão sobre a arte e a literatura contemporâneas.
Com o humor que lhe é peculiar, Vila-Matas coloca em inusitada perspectiva o papel do artista em uma Europa destroçada pela crise e reconstrói uma visão de mundo a partir do questionamento sobre a arte.
O livro acaba de ser lançado no Brasil, pela Cosac Naify, traduzido pelo escritor Antônio Xerxenesky. A edição conta com texto de orelha de Verônica Stigger, que analisa:
“Muito mais do que um simples relato de como transcorreram seus dias na Alemanha, o livro se revela uma grande reflexão sobre a literatura e a arte contemporâneas, vistas a partir da crise econômica na Europa e em confronto com ela, afinal “qualquer atividade ligada à vanguarda”, observa, “nunca deveria perder de vista o lado político”. Vila-Matas sai de Barcelona, onde mora, disposto a abandonar “os clássicos tiques fatalistas dos intelectuais” de seu país, que acreditam ser a arte contemporânea “um desastre absoluto”. Diante das obras expostas na Documenta 13, sobretudo aquelas que mais o tocaram – como Untilled, de Pierre Huyghe, uma esterqueira montada em pleno parque, e This variation, de Tino Sehgal, que ele visitava todas as manhãs –, Vila-Matas percebe que não foi a arte que entrou em colapso, mas o mundo”. Stigger conta que que Carolyn Christov-Bakargiev, uma das curadoras da Documenta, perguntou ao escritor o que estava achando da mostra: “À questão, que o pega de surpresa, Vila-Matas responde: ‘Que não há mundo’. Mas, se não há mundo, há ainda arte. Frente a uma Europa destroçada pela crise, frente a um mundo arruinado, não sobra nada mais ao escritor e ao artista do que criar: ‘A Europa estava morta […], mas a arte do mundo estava muito viva, era a única janela aberta que restava’. Ou seja, contrariando as vozes agourentas dos intelectuais de seu país, Vila-Matas chega à conclusão de que não é a arte que está em crise, mas, sim, todo o resto: ‘eu acreditava que a arte continuava perfeitamente de pé e, em todo caso, era apenas o mundo […] o que havia desmoronado’”.
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Trecho:
Quanto mais de vanguarda é um autor, menos pode se permitir ser classificado dessa forma. Mas quem se importa com isso? De fato, a minha frase é apenas um mcguffin e tem pouco a ver com o que me proponho a narrar, ainda que, talvez, ao final, tudo que eu contar sobre o convite para ir a Kassel e minha posterior viagem a essa cidade acabe desembocando precisamente nessa frase.
Como alguns sabem, para explicar o que é um mcguffin o melhor é recorrer a uma cena que se passa em um trem: “Poderia me dizer o que é este pacote no maleiro sobre a sua cabeça?”, pergunta um passageiro. E o outro responde: “Ah, isso é um mcguffin”. O primeiro quer saber, então, o que é um mcguffin, e o outro explica: “Um mcguffin é um aparato para caçar leões na Alemanha”. “Mas na Alemanha não há leões”, diz o primeiro. “Então isso não é um mcguffin”, responde o outro.
O mcguffin por excelência é O falcão maltês, o filme mais charlatão de toda a história do cinema. O filme de John Huston narra a busca por uma estatueta que os Cavaleiros de Malta pagaram como tributo por uma ilha a um rei espanhol. Fala-se muitíssimo sobre o objeto, sem parar, mas, ao final do filme, o cobiçado falcão pelo qual tantos chegaram até a matar se revela nada mais que o elemento de suspense que permitiu o avanço da trama.
Como já devem ter concluído, existem muitos mcguffins. O mais famoso se encontra no início de Psicose, de Hitchcock. Quem não se lembra do roubo realizado por Janet Leigh nos primeiros minutos? Parece tão importante e acaba se mostrando irrelevante para a trama. Não obstante, cumpre a função de prender a nossa atenção à tela pelo resto do filme.
E há mcguffins, por exemplo, em todos os episódios de Os Simpsons, nos quais o prelúdio que abre qualquer um deles tem pouco ou nada a ver com o que ocorre ao longo do capítulo.
Encontrei meu primeiro mcguffin em Aquele caso maldito, de Pietro Germi, adaptação cinematográfica de um romance de Carlo Emilio Gadda. Nesse filme, o comissário Ingravallo, entupido de café e perdido no labirinto de sua complexa investigação, falava de vez em quando por telefone com a sua santa esposa, que nunca víamos. Estaria Ingravallo casado com uma McGuffin?
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NÃO HÁ LUGAR PARA A LÓGICA EM KASSEL
Autor: Enrique Vila-Matas
Editora: Cosac Naify
Preço: R$ 32,90 (288 págs.)