Literatura

Desdobramentos entre o real e a fantasia

29 julho, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Quinten Massys

 “A partir de certo momento trocaram aclive por declive e se fixaram na construção da pior imagem possível do próprio ser que as produz”.

 

Mar Negro, novo romance de Dau Bastos, conta a história de Anderline, uma alagoana cujo principal atributo é a extrema feiura, qualidade contornada por uma inteligência sagaz. Ela foge para o Leste Europeu, passa pela Polônia, Hungria, Romênia, Bulgária e Turquia: experiencia lados ruins como prisioneira da realidade, ao mesmo tempo em que busca sua identidade enquanto assumida personagem de uma ficção. Em cada parada de sua viagem, esparge uma afrodisíaca fragrância e acaba por conquistar alguns homens e, ao chegar a Istambul, consegue a proeza de transformar a sufocante burca em suporte para enfim tecer uma relação duradoura. A crítica à ditadura da beleza ressoa na prosa de Dau Bastos, encaminhando uma reflexão sobre o real e a fantasia. Um livro criativo e ousado, que desafia o estabelecimento de fronteiras da existência – “bom era o tempo em que a poesia e a prosa se uniam à religião na aposta na capacidade humana de ascender da inconstância terrena à estabilidade fundamental”.

Como coloca José Castello, em resenha publicada no Jornal Rascunho (publicada originalmente no blog A literatura na poltrona, do jornal O Globo), no “mundo sobrecarregado de realidade em que vivemos, regido pelo tempo real e pelos choques da ação instantânea, nunca tivemos tanta necessidade de ficção. Ela se torna tão importante para nossa sobrevivência quanto a própria realidade. Até os personagens da literatura nos pedem mais fantasia. “Necessitada em igual medida da realidade e da ficção, iniciei um tráfego intenso entre as duas dimensões, às quais comecei a recorrer em função das precisões do momento”, medita Anderline, a protagonista de Mar Negro, novo romance de Dau Bastos. Mesmo na ficção, a necessidade de uma duplicação de visões se torna urgente. Ninguém suporta mais um mundo devassado e achatado”. Sobre a protagonista, Castello analisa: “Tão importante quanto a busca de aceitação da feiura, porém, é sua procura incessante de uma identidade. Precisa assumir-se como personagem de ficção. Sabe que um Autor a manipula e dirige seu destino — e contra ele se afirma. É uma personagem ativa, que coloca em questão, a cada página, a condição ficcional que lhe é imposta. Ultrapassa, assim, a bruta fronteira que separa a imaginação do real. “Nunca confundi tanto os limites entre ficção e realidade”, Anderline admite. Muito além da Europa escura, ela viaja através dessas fronteiras que nunca se deixam definir. Tanto de um lado — ficção — como do outro — real —, elas se dissolvem, irreconhecíveis”.

Dau Bastos é, além de escritor, também professor da UFRJ. Entre seus livros estão os romances Das trips, coração (1984), Snif (1987), Clandestinos na América (2005) e Reima (2009), a tese Céline e a ruína do Velho Mundo (2005) e a biografia intelectual Machado de Assis: num recanto, um mundo inteiro (2008).

Em entrevista à Revista Educação Pública, concedida em junho de 2012, Dau Bastos disse que considera importante que professores de literatura sejam, também, escritores: “Sim. Não digo isso para valorizar minha condição de dublê de autor e docente, mas pensando na qualidade das aulas e comunicações daqueles colegas que escrevem com regularidade, seja ensaio, ficção ou poesia. A rigor, o professor de Literatura tem de conhecer bem crítica, história e teoria literárias. No entanto, o enfrentamento do vazio da folha de papel ou da tela do computador possibilita que ele se coloque do outro lado do balcão, ou seja, que se ponha no lugar do produtor de texto. A luta para encontrar as palavras mais adequadas, o empenho em harmonizar os vocábulos, a atenção ao ritmo da frase, o cuidado com a roteirização dos conteúdos, tudo isso ajuda a compreender o processo de escrita e a ficar mais à vontade para esquadrinhar os textos alheios. Hoje, então, que o lema “publicar ou perecer” se faz presente nas universidades de todo o planeta, o professor de Literatura das instituições públicas de ensino – não me refiro aos colegas das privadas devido ao alto grau de exploração de que são vítimas – que se limita à fala deixa bastante a desejar e, na verdade, é um espécime cuja extinção não fará falta alguma”.

 

 

MAR NEGRO

Autor: Dau Bastos
Editora: Ponteio
Preço: R$ 49,00 (276 págs.)

 

 

 

 

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