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A perspectiva em perspectiva

15 julho, 2014 | Por Isabela Gaglianone

ícone conhecido como Theotokos de Vladimir, 1131.

O russo Pável Floriênski (1882-1937) foi matemático, inventor, geólogo, filósofo, teólogo e padre da Igreja Ortodoxa. Foi morto num campo de concentração soviético aos 55 anos. Seu ensaio A perspectiva inversa, originalmente publicado em 1919, é considerado um de seus mais importantes legados intelectuais.

Desenvolvido no entroncamento de seus múltiplos saberes, trata-se de uma reflexão sobre a representação do espaço na perspectiva inversa e na perspectiva linear, bem como as visões de mundo que ambas as formas podem acarretar.

O livro foi publicado no Brasil em 2012 pela Editora 34, com tradução de Neide Jallageas e Anastassia Bytsenko e apresentação de Neide Jallageas. Nele, Floriênski antecipa questões fundamentais da história da arte no Ocidente, analisando criticamente o domínio da representação objetiva da realidade, bem como a tendência das obras a buscarem, no observador, um ponto de vista estático e abstrato. O autor mostra que as opções artísticas dos pintores de ícones, tão rudimentares aos olhos contemporâneos, não eram decorrência da ignorância das técnicas que a Idade Moderna viria a difundir. De acordo com o autor, alguns dos melhores exemplos da arte renascentista devem muito de sua grandiosidade artística justamente à transgressão, consciente e sistemática, da perspectiva linear. A análise de Floriênski sobre o papel do corpo na relação entre espaço e tempo, aliada à noção de que a arte deve pautar-se por uma compreensão integral da realidade, ressoam em projetos de diversos artistas contemporâneos – um deles, o cineasta Andriêi Tarkóvski (1932-1986), um de seus mais notórios seguidores. O cineasta fez seu segundo e mais importante filme sobre Andrei Rublióv, pintor de ícones do século 15. Naturalmente, a obra de Pável Floriênski foi referência fundamental, que ele cita diversas vezes – nos seus Diários, por exemplo, cita-o três vezes. Tarkóvski atualiza, no cinema, a arte de que fala Floriênski, a arte pura e metafísica, ou como o disse o cineasta, arte como um hieróglifo da verdade. O lançamento de A perspectiva inversa, em coro justamente a essa identificação intelectual, foi acompanhado pelo lançamento do livro Tarkóvski – Instantâneos, pela CosacNaify (com introdução de Jallageas, o livro, uma coleção de 60 polaroides do diretor, encontra-se esgotado) – sobre essa relação, é rica a análise da tese de doutorado de Neide Jallageas, que tematiza a perspectiva inversa como procedimento na construção da obra deste cineasta.

Pável Floriênski mostra toda a riqueza das pinturas icônicas. Pensando a perspectiva linear, pergunta se seria verdadeiro dizer que ela “expressa a natureza das coisas, como pretendem seus adeptos, e por isso deve sempre e em qualquer lugar ser considerada a premissa incondicional da veracidade artística?”. Sua resposta, busca descobrir até que ponto, historicamente falando, a representação e a perspectiva linear podem ser pensados como inseparáveis.

Segundo Josias Teófilo, em artigo publicado na revista Continente, a “explicação para a introdução da perspectiva linear na arte moderna, surgida a partir do renascimento pode ser resumida nesse trecho: “Quando a estabilidade religiosa se desintegra da concepção do mundo e a metafísica sagrada da consciência comum é corroída pelo ponto de vista particular do juízo individual, e, mais do que isso, de um ponto de vista particular de um determinado momento histórico, é que surge uma perspectiva característica para essa consciência individual isolada”. Segundo Teófilo, é possível “notar que a abordagem de Floriênski é verdadeiramente ampla, e parte do uso da perspectiva linear para compreender uma postura do homem a partir da modernidade. Isso fica ainda mais claro no trecho que se segue: “O páthos do novo homem reside em desprender-se de qualquer realidade, para que o “eu quero” dite as leis sobre uma realidade recém-construída, fantasmagórica, embora encerrada em traços quadriculados”. […] é natural uma revalorização da Idade Média por Floriênski. Segundo ele, nesse período, “flui um rio caldaloso da verdadeira Cultura”, cujas origens estão na verdadeira Antiguidade”.

Em entrevista, a tradutora, questionada sobre a censura a que a obra de Floriênski foi submetida durante tanto tempo na União Soviética, pontuou: “Floriênski tinha muitas faces, era um sábio, um homem de vasta cultura e múltiplos conhecimentos. Sua posição profundamente humanista e seu alto nível intelectual é o que incomodava, de fato. Como incomodaria hoje também, não apenas na Rússia, mas em qualquer local do planeta. A diferença é que ele vivia na União Soviética, nesse período, quando aqueles que incomodavam eram exilados, presos ou mortos. Não podemos esquecer que o mesmo ocorreu com Meyerhold, com Mandelstam e com tantos outros que nada tinham a ver com a religião. Mesmo o ícone, sem dúvida um “objeto” religioso, é abordado por Floriênski do ponto de vista espacial, do ponto de vista da percepção e da arte, e não da religião propriamente dita”. Sobre alguma comparação na filosofia da arte ocidental a este estudo e a riqueza argumentativa da visão privilegiada que oferecia a formação múltipla do autor em relação ao seu tema, ela disse: Há, sem dúvida, um estudo de grande valor, realizado por Panofsky e publicado em 1927, A perspectiva como forma simbólica, que se aproxima da abordagem de Floriênski. Mas apenas se aproxima. E, se avançarmos na leitura e estudo dos textos que Floriênski desenvolveria a partir de suas pesquisas sobre espaço e tempo nas artes para proferir as aulas no Vkhutemas, estaremos falando de algo único. Ocorre que esse conjunto de saberes dominados por Floriênski confere-lhe um lugar histórico apenas comparado a Leonardo da Vinci. Mesmo a motivação de Floriênski era outra. Temos que considerar o contexto em que ele vivia. Um russo que compreendia a pintura de ícones e as tradições da arte russa em um momento no qual os bolcheviques almejavam destruir tudo o que fora feito nesse sentido até então! Floriênski não apenas teorizava ou filosofava, ele defendia um olhar, uma postura na e de vida, um direito de ser e estar no mundo, gravado em séculos e séculos de arte russa. Daí o sentido de liberdade de vida estar tão intimamente ligado à liberdade na arte, à liberdade espiritual, como também defendeu Andrei Tarkóvski”.

 

A PERSPECTIVA INVERSA

Autor: Pável Floriênski
Editora: Editora 34
Preço: R$ 23,80 (144 págs.)

 

 

 

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