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O poeta nocaute

23 setembro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Murilo Mendes, por Guignard

Finalmente parte da obra de Murilo Mendes recebe atenção editorial e ganha novas edições.

A Antologia poética, publicada agora pela Cosac Naify traz 142 poemas selecionados por dois especialistas na obra do poeta, prosador e crítico de arte juiz-forano, Júlio Castañon Guimarães e Murilo Marcondes de Moura, que também assinam o posfácio.

O volume conta ainda com um texto escrito pelo poeta, “A poesia e o nosso tempo”. Ensaio belo e profundo sobre a linguagem poética, no qual pode-se ler, por exemplo: “[…] Certo da extradordinária riqueza da metáfora – que alguns querem até identificar com a própria linguagem – tratei de instalá-la no poema com toda a sua carga de força”.

Nascido em Juiz de Fora em maio de 1901, Murilo Mendes ingressou na cena literária brasileira publicando nas revistas modernistas Terra Roxa, Outras terras e Antropofagia. Sua primeira poesia tratava de questões caras ao modernismo, como o nacionalismo, o folclore, o coloquialismo, o humor, o poema-piada, a paródia. O seu livro de estreia, Poemas – que também agora ganha nova edição pela Cosac Naify –, publicado em 1930, foi muito bem recebido tanto pela crítica quanto pelos poetas brasileiros – Drummond, João Cabral, Manuel Bandeira são exemplos.

A partir da publicação de O visionário, em 1941, a influência surrealista tornou-se mais manifesta e decisiva na poesia de Murilo. Conforme analisou Mário de Andrade, em Aspectos da literatura brasileira, “Murilo Mendes não é um surrealista no sentido de escola, porém me parece difícil da gente imaginar um aproveitamento mais sedutor e mais convincente da lição surrealista. Negação da inteligência superintendente, negação da inteligência seccionada em faculdades diversas, anulação de perspectivas psíquicas, intercâmbios de todos os planos, que não exemplifico porque são todo o livro. O abstrato e o concreto se misturam  constantemente, formando imagens objetivas”.

Através da montagem surrealista, “acoplagem de elementos díspares” conforme suas próprias palavras, Murilo Mendes conseguiu com notável liberdade amalgamar ao cotidiano o imaginário, o lúdico, o eterno. Motivo que fez o poeta Manuel Bandeira saudá-lo como o grande conciliador de contrários. O sensualismo permeado por uma visão mágica, bem como o “anarcoerotismo”, tornaram-se também aspectos marcantes.

A plasticidade e o predomínio da imagem sobre a mensagem são traços fundamentais de sua poesia. João Cabral de Melo Neto, sobre isso, disse: “[…] a poesia de Murilo me foi sempre mestra, pela plasticidade e a novidade da imagem. Sobretudo foi ela que me ensinou a dar precedência à imagem sobre a mensagem, ao plástico sobre o discursivo”. Outro aspecto da poesia de Murilo Mendes é a influência que sobre ele teve o pintor Ismael Nery, que o levou a desenvolver uma vertente poética essencialista, metafísica, buscando definições da natureza dos seres e das coisas, de maneira independente de tempo e de lugar. Além da influência intelectual, a morte prematura de Nery, que morreu aos 34 anos, desencadeou em Murilo uma severa crise, que o levou a converter-se ao catolicismo.

Segundo José Guilherme Merquior, sua poesia católica, mais que uma crença, uma poesia da esperança. Seu cristianismo o leva a desenvolver uma concepção dupla de poesia: por um lado, a poesia como martírio, que testemunha o sofrimento do eu que é indissociável do mundo; por outro lado, uma segunda concepção é a de poesia como salvação, como agente messiânico.

O catolicismo não diminui nem o sensualismo e nem o ímpeto transfigurador do real, aspectos característicos da sua poesia. Antes, serviu, em conjunto com aqueles dois elementos, como tripé sustentáculo de sua poética, em consonância à sua visão das variações políticas, sociais e morais que lhes foram contemporâneas. Segundo Flora Sussekind, em Murilo Mendes: um bom exemplo na história, o poeta “testemunha, olho do mundo, exilado, observador visionário: escravidão: epítetos geralmente atribuídos aos profetas são transferidos em Murilo, para o poeta-profeta”.

Uma interessante análise sobre a poesia de Murilo Mendes foi feita pelo poeta Ricardo Domeneck, em artigo publicado no site da revista de poesia Modo de usar & Co.. Ele diz: “Nestes nossos tempos de equívoco crítico desastrado que busca equivaler como se sinônimos, de forma confusa e desengonçada, conceitos como “pós-utópico”, “trans-histórico” e “sincrônico”, Murilo Mendes retorna como mestre supremo e indispensável. Pois é importante dizer que o “surreal” em Murilo Mendes talvez se manifeste com força real de escrita automática apenas em um livro como As Metamorfoses (1944), como Murilo Marcondes de Moura já argumentou, já que M.M. parece ter usado o surrealismo apenas para educar-se em sua futura maestria do que já foi chamado de “metáfora dissonante” e para a própria conjunção entre linguagem metafórica e metonímica que parece operar em um poema como “Janela do caos”. Há pouquíssimo de “automático” na escrita do mestre mineiro. Um poema como “Janela do caos” apresenta-se consciente em cada filigrana de sua textualidade, atento à conjugação do temporal, secular e histórico como campos de ação do sagrado, daí o caráter hierofânico de sua fanopeia”.

Dos organizadores de Antologia poética, existem publicados dois excelentes estudos sobre a poesia de Murilo Mendes: Murilo Mendes – A poesia como totalidade, de Murilo Marcondes de Moura (publicado pela Edusp em 1995, disponível apenas em sebos), e Territórios/Conjunções: poesia e prosa críticas de Murilo Mendes, de Júlio Castañon Guimarães (publicado em 1993 pela Imago, também esgotado e só disponível em sebos.

A Cosac Naify disponibiliza um trecho para visualização.

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Janela do caos

 

1

Tudo se passa

Em Egitos de corredores aéreos

Em galerias sem lâmpadas

À espera de que Alguém

Desfira o violoncelo

– Ou teu coração?

Azul de guerra.

 

 

2

Telefonam embrulhos,

Telefonam lamentos,

Inúteis encontros,

Bocejos e remorsos.

Ah! Quem telefonaria o consolo

O puro orvalho

E a carruagem de cristal.

 

 

3

Tu não carregaste pianos

Nem carregaste pedras

Mas na tua alma subsiste

– Ninguém se recorda

E as praias antecedentes ouviram –

O canto dos carregadores de pianos,

O canto dos carregadores de pedras.

 

 

 

4

O céu cai das pombas.

Ecos de uma banda de música

Voam da casa dos expostos.

Não serás antepassado

Porque não tiveste filhos:

Sempre serás futuro para os poetas.

Ao longe o mar reduzido

Balindo inocente.

 

 

5

Harmonia do terror

Quando a alma destrói o perdão

E o ciclo das flores se fecha

No particular e no geral:

Nenhum som de flauta,

Nem mesmo um templo grego

Sobre colina azul

Decidiria o gesto recuperador.

Fome, litoral sem coros,

Duro parto da morte.

A terra abre-se em sangue,

Abandona o branco Abel

Oculto de Deus.

 

 

6

A infância vem da eternidade.

Depois só a morte magnífica

– Destruição da mordaça:

E talvez já a tivesses entrevisto

Quando brincavas com o pião

Ou quando desmontaste o besouro.

Entre duas eternidades

Balançam-se espantosas

Fome de amor e a música:

Rude doçura,

Última passagem livre.

Só vemos o céu pelo avesso.

 

 

7

Cai das sombras das pirâmides

Este desejo de obscuridade.

Enigma, inocência bárbara,

Pássaros galopando elementos

Do fundo céu

Irrompem nuvens eqüestres.

Onde estão os braços comunicantes

E os pára-quedistas da justiça?

Vultos encouraçados presidem

À sabotagem das harpas.

 

 

8

Que esperam todos?

O vento dos crimes noturnos

Destrói augustas colheitas,

Águas ásperas bravias

Fertilizam os cemitérios.

As mães despejam do ventre

Os fantasmas de outra guerra.

Nenhum sinal de aliança

Sobre a mesa aniquilada.

Ondas de púrpura,

Levantai-vos do homem.

 

 

9

Penacho da alma,

Antiga tradição futura:

?Se a alma não tem penacho

Resiste ao Destruidor?

 

 

10

A velocidade se opõe

À nudez essencial.

Para merecer o rompimento dos selos

É preciso trabalhar a coroa de espinhos.

Senão te abandonam por aí,

Sozinho, com os cadáveres de teus livros.

 

 

 

11

Pêndulo que marcas o compasso

Do desengano e solidão,

Cede o lugar aos tubos do órgão soberano

Que ultrapassa o tempo:

Pulsação da humanidade

Que desde a origem até o fim

Procura entre tédios e lágrimas.

Pela carne miserável,

Entre colares de sangue,

Entre incertezas e abismos,

Entre fadiga e prazer,

A bem-aventurança.

Além dos mares, além dos ares,

Desde as origens até o fim,

Além das lutas, embaladores,

Coros serenos de vozes mistas,

De funda esperança e branca harmonia

Subindo vão.

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ANTOLOGIA POÉTICA

Autor: Murilo Mendes
Editora: Cosac Naify
Preço: R$ 31,43 (304 págs.)

 

 

 

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