Literatura

Princípios

24 março, 2014 | Por Isabela Gaglianone

“Chegado a esse ponto, de onde não mais se vê o lugar de partida, resta apenas tocar para a frente. Não ter para onde voltar e saber que não é a partir daqui que inicio”.

 

Rodrigo Naves, conhecido como um dos críticos de arte mais relevantes e atuantes do cenário brasileiro, é também um surpreendente escritor. Seus contos caracterizam-se por um aspecto seco, em que a linguagem desdobra-se, sobrepujando o enredo, as personagens, a narrativa, seu espaço e seu tempo. Seu trabalho analítico como crítico espelha-se nos breves textos de O filantropo pela captação instantânea daquilo que é narrado. Seus contos, construídos sobre poucas e precisas palavras, ficam num rico limiar entre ensaios e poemas em prosa e, ali muito bem equilibrados, criam um “sólido chão prosaico” e debruçam-se sobre temas éticos. Ao longo do livro, de história em história, o “filantropo” que dá nome à obra vai sendo paulatinamente construído. Segundo a descrição do poeta João Moura Jr., os textos, vistos mais de perto, “só fazem acentuar a estranheza, uma vez que a organização do conjunto obedece a uma lógica perversa. Boa parte dos que são narrados na primeira pessoa vai como que compondo um personagem ao longo do livro, o “filantropo” do título, obsedado em estabelecer normas de conduta para si próprio, em pautar sua existência pela justa medida aristotélica. Mas de chofre esse narrador subjetivo transmuta-se numa freira em “Alvura”. Mais adiante, aquilo que conduz à virtude segundo a moral de Aristóteles tem uma finalidade nada edificante no trato com meninas impúberes: “Elas se tornam impacientes quando ultrapassamos a justa medida” (“De doze anos”)”.

Como analisou Cristovão Tezza, “os textos de Rodrigo Naves são costurados a régua, centímetro a centímetro, peças isoladas que parecem ter em comum apenas a lenta respiração de um narrador cansado e fragmentário, de frases curtas, às vezes obcecado pela ordenação do mundo, mas cujo olhar se fecha assim que alguma imagem toma corpo; para recomeçar na página seguinte, em outra face. A questão do gênero talvez também angustie o leitor: descobrir, afinal, qual o território literário dos textos, em que mundo eles se movem; em suma, descobrir em que linguagem as palavras se agarram para dizer o que nos dizem”. Sobre a multiplicidade de gêneros, Tezza comenta que os textos de Rodrigo Naves desenvolvem “uma certa dicção de conversa (“Dou bons conselhos. Gosto de me ouvir dando bons conselhos”; ou, em outro momento, “Sou um homem feito, repito para mim mesmo”). Daí transparece uma intimidade simples, que vai crescendo em estranhezas e achados na relação – ou mais freqüentemente na falta de relação aparente – entre uma fala e outra”.

Para Vilma Areas, professora de Teoria literária da UNICAMP, se “a estranheza e o choque moderno de O filantropo podem ser causados pela “promiscuidade de gêneros” (ficção, ensaio e prosa poética), conforme observa João Moura Jr. na orelha do livro, tendo a achar que, embora essa possível mistura de saída nos intrigue, existem por outro lado correntes que arrastam esses textos irresistivelmente a uma direção determinada, sobrepondo-se tal movimento às demais elucubrações. Um dos portos dessa rota inclui uma meditação sobre uma “triste ciência”, isto é, a doutrina da vida reta, conforme explicitou Adorno. Triste porque, segundo ele, entregue à desatenção intelectual e à arbitrariedade sentenciosa, tendo afinal caído em desuso, apesar de ininterruptamente citada enquanto palavra (a ética) na mídia e nos discursos governamentais. Em O filantropo essa meditação toma forma de teorema, isto é, algo “para ser contemplado”. Para a professora, “O filantropo é um livro exemplar, em duplo sentido: formalmente cumpre o que expõe como horizonte literário – a forma trabalhada e precisa -, além disso com tantas “dobras e desvãos” (Escala) que é capaz de envolver o leitor nas engrenagens necessariamente tortuosas da subjetividade sem referências para a construção da “doutrina da vida reta”. A partir dessa exemplariedade misturada (o positivo versus o negativo, o positivo unido ao negativo) abre-se a porta por onde entramos numa espécie de terra ética e metafisicamente devastada, desde Eliot retrato dos tempos modernos”.

 

 

O FILANTROPO

Autor: Rodrigo Naves
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 21,70 (96 págs.)

 

 

 

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