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Reconhecimento e violência ética

21 março, 2016 | Por Isabela Gaglianone

pintura de Paul Klee

Em Relatar a si mesmo – Crítica da violência ética, a filósofa estadunidense Judith Butler analisa o problema da autotransparência e autonarratividade, crucial para um entendimento ético do ser humano.

Trata-se de um brilhante diálogo com filósofos como Adorno, Lévinas, Foucault, entre outros, através do qual a autora realiza uma crítica do sujeito moral, mostrando que o sujeito ético transparente e racional é um construto impossível que busca negar a especificidade da essência humana.

Neste estudo, que é sua primeira investigação ampla sobre filosofia moral, Judith Butler desenha uma nova prática ética, capaz de responder ao novo sentido do sujeito e à sua necessidade de autonomia crítica. Sua interpretação pauta-se pela busca do significado de ter uma vida ética. Seu ponto de partida é a análise de nossa capacidade de responder a perguntas do tipo: “Como (eu) devo agir?” ou “O que (eu) devo fazer?”. Butler atrela estas questões a uma questão anterior, a saber, quem é o “eu” que se vê constrangido a agir de determinada maneira e a realizar certo tipo de relato de si: o sujeito, respondendo a esta questão primeira, entende que não pode narrar a si mesmo sem responsabilizar-se. E sua resposabilidade não é alheia às condições sociais em que surge, de modo que a reflexão ética exige uma teoria social.

Butler mostra que só podemos nos conhecer de forma incompleta, apenas em relação a um mundo social mais amplo, que sempre nos precedeu e moldou de maneiras tão profundas que não somos capazes de apreender inteiramente. Somos, pois, opacos a nós mesmos. E, desta maneira, como pode o ato ético ser definido pela explicação que damos de nós? Judith Butler, assim, pergunta: Um sistema ético que nos considera responsáveis por nosso pleno autoconhecimento e nossa consistência interna não nos inflige um tipo de violência ética, levando a uma cultura de autocensura e crueldade?

A filósofa reformula a ética como um projeto em que ser ético significa tornar-se crítico das normas que nunca escolhemos, mas que guiam nossas ações. Butler assim introduz a questão:

“Gostaria de começar considerando como pode ser possível colocar a questão de filosofia moral – questão que tem a ver com a conduta e, portanto, com o fazer – dentro de um referencial social contemporâneo. Colocar a questão nesse quadro já á admitir uma tese a priori, a saber, não só que as questões morais surgem no contexto das relações sociais, mas também que a forma dessas questões muda de acordo com o contexto – e até o contexto, em certo sentido, é inerente à forma da questão”.  

Em entrevista concedida ao jornal O Globo, Judith Butler, questionada sobre a possibilidade de vida ética no mundo real, tendo em vista que, em Relatar a si mesmo, ela acusa como construção impossível o sujeito ético transparente e racional, diz: “Não tenho certeza se sei a real natureza do ser humano. Creio que estava apenas argumentando que somos formados pelos nossos meios, histórias sociais, convenções de poder e realidades físicas que tornam difícil nos conhecermos perfeitamente. Não devemos ter autoconhecimento perfeito para conduzir uma vida ética ou nos engajarmos politicamente. Nossa falibilidade significa que temos de assumir riscos com nossas ações sem saber sempre o que nos motiva a qualquer momento. Cometemos erros e aprendemos. E, se erramos, não só é um sinal de que somos falíveis, mas de que essa falibilidade nos aproxima dos outros, revela-nos como criaturas sociais”.

Segundo Carla Rodrigues, professora de Ética no Departamento de Filosofia da UFJR, em artigo escrito para o blog do Instituo Moreira Sales, com a publicação de Relatar a si mesmo, Judith Butler “ingressa no grupo das grandes pensadoras políticas, articulando os problemas de gênero como problemas com os quais a filosofia moral se debate desde meados do século XX: a ideia de que, uma vez abalado o sujeito como fundamento da moral, estejamos vivendo em um ambiente de niilismo ético, sem referências, a reboque de transformações sociais a partir das quais estaremos todos perdidos”. De acordo com a professora, o “subtítulo do livro – crítica da violência ética – aponta para o que me parece haver de mais importante no texto, até porque a palavra ética costuma vir carregada de uma conotação positiva. Tendemos a pensar que decisões tomadas conforme a ética são consideradas boas decisões. Quando Butler associa ética a uma forma de violência, retoma um debate sobre reconhecimento, termo muito caro ao seu pensamento, para interrogar como, dentro da reivindicação de reconhecimento, pode também estar contida a violência de um enquadramento prévio a partir do qual o reconhecimento então se dá”.

Entre os agradecimentos, Butler agradece ao principal estudioso da noção de “reconhecimento” na teoria crítica, Axel Honneth, diz ela: “pela oportunidade de rever a obra de Adorno e me envolver com ela de uma maneira nova”.

No Brasil, o livro foi publicado em setembro do ano passado, pela editora Autêntica, com tradução de Rogério Bettoni. A edição conta com posfácio de Vladimir Safatle, o ótimo texto “Dos problemas de gênero a uma teoria da despossessão necessária: ética, política e reconhecimento em Judith Butler”.

 

 

RELATAR A SI MESMO

Autor: Judith Butler
Editora: Autêntica
Preço: R$ 22,80 (200 págs.)

 

 

 

 

 

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