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Georges Perec

24 março, 2016 | Por Isabela Gaglianone

La Disparition” foi publicado na França em 1969. A fantástica engenhoca metalinguística e literária de Georges Perec ganhou este ano sua primeira tradução para o português, sob o título O sumiço.

O tradutor, Zéfere, no posfácio, conta os truques que criou para transpor a trama policial do enredo: o sumiço da vogal “e”, a mais frequente da língua francesa. O livro não restringe-se, porém, ao lipograma – nome dado a textos que suprimem um ou mais tipo. Sua inovação ultrapassa o sumiço da vogal e faz, do próprio desaparecimento, o tema do romance e norte de sua história: Perec cria um mundo de letras, povoado por seres de letras, cujo destino depende também das letras e, sobretudo, do sumiço de uma delas. O resultado é uma mirabolante história de investigação policial, entremeada aos jogos de linguagem que desdobram-se sobre a própria língua, mutilada, porém.

O tradutor, em entrevista à revista Cult, questionado sobre a dificuldade, em termos comparativos, entre o português e o francês, de se escrever sem a letra “e”, disse: “Sem dúvida alguma, é bem mais difícil escrever sem “e” em francês, língua em que sua frequência é cerca de 5 a 6% mais alta que em português. No entanto, Perec usa e abusa de um recurso (inclusive cometendo erros voluntários) de que não posso dispor: palavras gramaticais como “de” e “que” e pronomes como “me”, “te” e “se” podem ter seu “e” substituído por ele pela apóstrofe quando se encontram com outras iniciadas por vogal, por exemplo, em “un trio d’insignifiants politicards” ou “tandis qu’à Wagram on battait” ou “mi-riant, mi-s’offusquant”. Já na língua portuguesa, em que essas palavras são tão frequentes quanto na francesa, a utilização da apóstrofe é bem mais rara, sendo encontrada apenas em algumas expressões fixas como, no caso do “de”, “copo d’água” ou “passada d’olhos”. Quanto ao “que”, esqueça-o em português: algo como “um livro qu’adquiri na livraria” soaria como uma aberração, e escrever “um livro qui adquiri na livraria” seria uma trapaça muito barata. No que concerne aos verbos pronominais reflexivos, melhor esquecê-los também: nada de “s’implicar com o tradutor” em O Sumiço ou “m’odiar”, a não ser quando se trata de um erro voluntário em que busco ser tão explícito quanto Perec na sua própria escrita”. Para Zéfere, a maior dificuldade não foi tanto a ausência da vogal, mas, diz, “a onipresença dessa ausência, ou melhor, a onipresença de pistas que apontam para essa ausência, pois o livro é todo construído em torno dela, arquitetado para (re)velá-la de alguma forma, para mostrá-la sob máscaras. Perec, fascinado com jogos (sobretudo de linguagem), produzia palavras-cruzadas, charadas e outros enigmas linguísticos para periódicos — e tudo isso se inseria igualmente no jogo que mais dominava, a literatura, como ele próprio dizia, suas armadilhas, que fazem lembrar uma criança que, ao brincar de esconde-esconde, nunca sabe se seu maior desejo é ficar escondido ou se mostrar. Sendo que toda essa jogatina é elaborada sobre a materialidade da língua, a partir do momento em que esta já não é mais a mesma na tradução, deve-se proceder a transformações bastante radicais em alguns instantes”.

O jornalista Luciano Trigo, em artigo publicado no seu blog, “Máquina de escrever”, conta que: “Surpreendentemente, Georges Pérec se declarava um escritor sem imaginação, que usava determinados desafios formais como estimulantes para a escrita – caso do lipograma em O sumiço.  Esses desafios eram cultivados pelos integrantes do grupo ‘Oulipo’ (Oficina de Literatura Potencial), que, sediado em Paris, reunia autores como Raymond Queneau e Italo Calvino. “Exercícios de estilo” (1949), de Queneau, por exemplo, é um romance que conta a mesma história, sobre uma discussão num ônibus de Paris, de 99 maneiras diferentes. Uma das aventuras de Pérec no Oulipo foi criar o maior palíndromo (texto que pode ser lido também de trás para frente) da língua francesa, com 1.247 palavras. Outro, ainda, foi a criação de uma novela em que a vogal ‘e’ é a única que aparece, ‘Les revenentes’”.

Para o crítico Victor da Rosa, conforme escreveu em artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, toda a obra de Perec costuma “compor uma rara façanha: afora sua marca vanguardista”, seus livros “atraíram, ao longo dos anos, admiração incomum”. Com O sumiço não é diferente. Diz o crítico: “Passadas as páginas iniciais, aos poucos o livro cativa: por conta do domínio total da ficção policial, com reviravoltas inusitadas, ou do humor particular do autor, um fino provocador. Digo mais: o livro já brota como um marco na história da tradução no Brasil”.

 

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Trecho:

Antoin Vagol não caía no sono. Ligou a luz. No pulso, o Jaz marcava uma hora da madrugada. Suspirou fundo, aprumou as costas na cama, apoiado numa almofada. Apanhou um livro, abriu-o, foi dando uma lida; mas só captava naquilo um imbróglio confuso, topava a toda hora com uma palavra cujo significado ignorava.

Largou o livro na cama. Foi à pia; molhou uma luva para banho, passou-a no rosto, na gorja.

Sua pulsação batia à disparada. Suava. Abriu a vidraça, sondou a madrugada. Não fazia calor, tampouco frio. Um rumor indistinto vogava no ar. Próximo dali, profundo como a tocar numa vigília, surdo como a dobrar numa inumação, abafado como a badalar sob a borrasca, um sino soou a sua batida trinitária. Lá do canal Saint-Martin, um murmulho lastimoso sinalizava uma barca a passar.

Na moldura da vidraça, um bicho do tórax azul índigo, com um aguilhão puxando para o açafrão, quiçá barata, quiçá moscardo, não, um borrachudo ia andando, arrastando consigo uma folhinha, uma alfa. Antoin ficou mais próximo, doido para achatá-lo com uma pancada, mas o animal, batidas as asas, voou, sumiu na madrugada. Vagol não logrou atingi-lo.

Tamborilou uma marcha militar no oblongo caixilho da vidraça.

Abriu o frigobar, apanhou um achocolatado, tomou uma xícara. Ficou mais apaziguado. Foi para o sofá, passou as páginas do jornal um tanto quanto distraído. Fumou um cigarro, conquanto incomodado com o odor. Tossiu.

Ligou o rádio: após uma música afro-cubana, tocaram um bóston, aí um tango, aí um fox, aí um cotilhão arranjado ao gosto do dia. Dutronc cantou algo do Lanzmann, Barbara, uma canção do Aragon, Stich-Randall, uma ária da “Aída”.

Haja vista o susto súbito do Antoin, havia tirado um cochilo. Anunciavam no rádio: “Notícias do dia”. Não havia um único fato com alguma importância. Valparaíso: duas dúzias mais um ou dois mortos na inauguração dum viaduto; Suíça: Norodom Sihanouk não irá a Washington; Matignon: Pompidou faz proposta aos sindicatos visando a uma nova organização do status quo, mas fica só na palavra. Biafra: conflitos raciais; Conakry: o assunto foi um putsch. Um tufão ia arrasando Nagasaki, um tornado batizado com um antropônimo gracioso (Amanda) ia ficando mais próximo das ilhas Tristão da Cunha, das quais a população ia saindo graças ao auxílio da Marinha.

Roland-Garros, por fim: numa partida da Copa Davis, Santana havia ganhado do Damon por 4 a 1.

Apagou o rádio. Agachou na alfombra, tomou inspiração, forçou uns cinco ou mais apoios na musculatura torácica, mas não tardou a ficar cansado. Aprumou as costas ainda no chão, fatigado, fixando com um olhar lasso o curioso croqui a surgir ou sumir na alcatifa Aubusson, a variar a partir das formas organizadas por sua visão:

Assim via, hora ou outra, uma argola inacabada com um traço horizontal alongando a sua ponta: quiçá como um G maiúsculo visto numa poça d’água.

Ou, branco no branco, surgida numa bruma cristalina, a altiva figura dum monarca brandindo um arpão com uma ponta tripla.

Ou, por um átimo, surgindo duma linha sob mais uma sob mais uma, um croqui aproximativo, insatisfatório: voltas avultadas, contornos bastardos a rascunhar, num vão arroubo da imaginação, a Mão tridáctila dum Sardônico rindo às gargalhadas.

Ou, como uma imposição, sim, punha ali a figuração dum borrachudo do tórax fuliginoso, no qual havia uma articulação trística dum branco próximo ao lirial.

Antoin dava asas à imaginação. A cada minuto mais absorvido naquilo, sondando a alfombra, via surgir cinco, ou mais uma combinação, duas dúzias mais uma ou duas, muitas, rascunhos pondo-o fascinado, mas fragílimos, lapsos falhos, obscuras figuras. Procurava organizá-las, buscando o surgidouro dum sinal mais nítido, dum sinal global cuja significação, quiçá, viria logo à tona, um sinal satisfatório. Contudo via um tramado com traços incôngruos, uns croquis silabados ou mal-acabados, aos punhados, todos soando como uma contribuição para urdir, para compor uma configuração dum croqui inicial ali simulado, imitado, aproximado, mas jamais todo à mostra:

um autor formado por uma pata humana, por uma marcha par trás, por dó;

transformado por um fulaninho, por uma convicção, por uma acusada;

um balido dum borro;

um sol cifrado;

ou olha: os olhos malignos duma orca colossal, provocando Jonas, hipnotizando Caim, fascinando Ahab: avatar múltiplo dum imo vital cuja divulgação consistia num tabu, substitutos ambíguos a contornar, “ad infinitum”, um logos, uma força abolida aos confins do nunca, mas pondo Antoin ansioso por avistá-la surgir, por todo o porvir.

Ficava irritado. A visão da alfombra fazia um mal alvoroçador para Vagol. Às voltas com tanta ilusão ditada por sua imaginação, cria avistar um ponto mais avultado, um foco ignorado, o qual, por muito pouco, por um triz, jamais podia alcançar.

Continuava. Contumaz. Fascinação da qual não podia abrir mão. No fundo da alfombra, como tudo fazia supor, havia um fio a tramar o obscuro ponto Alfa, um grão do Todo Grandioso dando profusas mostras do Infinito Cósmico, ponto primordial do qual, súbito, surgiria um panorama total, abismo com raio nulo, campo insabido do qual ia traçando o inaudito litoral, cujo contorno insinuado ia cobrindo com os próprios passos, turbilhão, altos muros, prisão, bordas galgadas mas nunca transpostas…

 

[divulgado pelo caderno Ilustríssima do jornal Folha de São Paulo, em 27/12/2015]

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O SUMIÇO

Autor: Georges Perec
Editora: Autêntica
Preço: R$ 42,40 (256 págs.)

 

 

 

 

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