Crítica de ouvido foi o último livro escrito pelo poeta, tradutor e ensaísta pernambucano Sebastião Uchoa Leite (1935-2003). É composto por ensaios, que abordam diversos temas que configura seu amplo universo de leitura: poesia, cinema, ensaio e fotografia. O livro possui três partes: o ensaio de abertura, “De poesia e de poetas”, privilegia a poesia moderna brasileira, elaborando questões sobre os trabalhos de Murilo Mendes, Raul Bopp e João Cabral de Melo Neto, ao passo que também trata das relações entre a cidade e poesia moderna, traçando, para tanto, um itinerário que parte de Paris no século XIX, passando por Londres, Nova York e Buenos Aires, até chegar ao Rio de Janeiro e a São Paulo. A segunda parte, “De prosa e de crítica”, funciona como um breve intervalo crítico e reflete sobre o trabalho ensaístico de Alexandre Eulálio. Na última parte, “Imagem e linguagem”, Uchoa desenvolve uma crítica do olhar, repassando um século de diferentes representações imagéticas da personagem Alice, criada por Lewis Carroll em 1863.
Segundo José Castello, em resenha a Crítica de ouvido, aponta que os ensaios do livro “vem se alinhar aos escritos daqueles que, em geral ligados à pesquisa universitária, se empenham na produção de um pensamento rigoroso e calcado em bases formais. É nessa direção, da afinação dos rigores e instrumentos críticos, na contramão de uma crítica intuitiva e impressionista, que Uchoa se move. Seu livro adquire uma importância especial quando contraposto, ou situado, justamente nesse cenário de luta intelectual em que se enfrentam, de um lado, os críticos mais racionalistas vindos dos bancos de escola, e de outro, aqueles mais intuitivos, procedentes das redações de jornais”. Para Castello, um “crítico eminente como Alexandre Eulálio, objeto aliás de um dos ensaios breves de Uchoa, defendia uma mediação e um equilíbrio entre as duas tendências, ou formações. De um lado aquela gerada, como ele dizia, no “nobre gueto universitário”, de outro aquela de caráter mais aleatório e sentimental. Ele julgava a divisão clássica entre críticos da imprensa e críticos da universidade só uma “oposição maniqueísta”, mecânica demais para dar conta da realidade”. Castello retoma “o belo ensaio sobre Murilo Mendes, no qual o próprio Uchoa Leite acaba por se definir, indiretamente, como um “crítico andarilho”, a mudar de temas e transitar por autores e cenários diversos (inquietação jornalística?)”. No ensaio, escrito por ocasião do lançamento da Poesia completa e prosa de Murilo pela editora Nova Aguillar, em 1994, “Uchoa Leite pôs-se a escavar a obra do poeta em busca de “um conturbado continente poético submerso, que surpreende pela atualidade”. É ele ainda quem diz que “a obra de Murilo Mendes abarca direção múltiplas, deixa no ar contradições e indagações, e no final o autor parece mudar radicalmente sua orientação estética”. Ou seja, não pode ser reduzida nem a uma única leitura, nem a um só olhar. Mas o que Uchoa Leite encontrou em sua escavação? […] Uma “dualidade ambivalente”, isto é, a “construção deliberada de uma desordem”, vertigem e fascínio pelo caos, reino da intuição, contraposta a uma “obsessão ordenadora”, reino da razão. Murilo, que era religioso, preferia falar em deus e o demônio, metáforas simples, opostos a constituir, e a dinamizar, a experiência humana. Então, tudo depende da perspectiva escolhida para observar o poeta e seus livros. Manuel Bandeira, por exemplo, o viu como “um dos três ou quatro bichos da seda da poesia brasileira”, quer dizer, um daqueles poetas que tiram tudo de si mesmos, como se não precisassem nem do passado, nem da tradição. Uchoa não o desmente, mas se apressa a dizer que a evolução posterior de Murilo “nos parece o contrário de um intuitivo” – e é aqui, nesse miradouro oposto ao de Bandeira, que ele, Uchoa Leite, vem descortinar seu pensamento crítico”.
O trabalho poético do próprio Uchoa Leite não é desvinculado de seu trabalho crítico. Conforme analisou Paulo Leminski, em uma resenha a Isto não é aquilo, intitulada “Cinema poético” (publicada na revista Veja em 1983), sua poesia “é uma das dicções mais contundentes da atual poesia brasileira. Uma lírica precisa, exata, uma poesia de signos carregados, elétrica, eletrizante. Em seu segundo livro – o primeiro foi Antilogia – Uchoa Leite continua fazendo alguma coisa entre o xavante e o “savante”. Entre a brutalidade de certos registros modernos e o vasto estoque de alusões e reminiscências literárias ou culturais de um intelectual de primeira categoria – ele é o tradutor das Crônicas italianas, de Stendhal, e das principais obras de Lewis Carroll para o português. Essa poesia é cerebral, até o cerne. Frequentam-na pouco os prazeres sensoriais da rima ou dos embaladores ritmos de letra de música. Ela é toda feita de ideias. Aí, talvez, um de seus principais méritos. Os poetas brasileiros de hoje que se opõem a uma poesia cerebral o fazem, muitas vezes, porque são muitas vezes mal dotados do mesmo. O cérebro de Uchoa Leite sente. A modos daquele Fernando Pessoa que dizia: o que sente em mim / está pensando” (as classificações comparativas, “xavante” e “savante”, referem-se a uma carta, escrita por Leminski em 10 de julho de 1979 – incluída em Envie meu dicionário – a Régis Bonvicino: “sebastião me mandou ‘antilogia’. muito bom. bem a cara do sebastião. troço meticuloso, limpo, cuidado. por um lado, é mais brothers campos, pelo alto repertório pressuposto. por outro, drácula, gibi, é mais nosso. enfim, isso é o sebastião. Disse pra ele, em carta, que eu apreciava os dois extremos, a poesia SAVANTE (sábia, erudita, écriture savante) e a poesia XAVANTE”).
A Crítica de ouvido de Sebastião Uchoa Leite é despretenciosamente erudita, seus belos ensaios são instigantes.
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Trecho:
Lewis Carroll Fotógrafo
Uma outra dimensão do universo simbólico de Lewis Carroll é a sua arte de fotógrafo. Nela, o autor exercita, por um lado, seu grande interesse pela visualidade, e, por outro, deixa fluir, às vezes explicitamente, sua libido excêntrica mal dissimulada. Carroll especializou-se em retratar meninas. Naturalmente, não apenas isso. Era um fotógrafo bastante apreciado (segundo, consta, da época vitoriana), que fotografou muita gente da sociedade que freqüentava e onde ocupava o lugar de excêntrico solitário: conhecidos, amigos e filhos de amigos, escritores, artistas eram objeto de sua arte fotográfica social. Retratos posados sempre de alta competência. Mas a aplicação realmente simbólica da técnica fotográfica centrou-se nos seus retratos esmeradamente posados de meninas impúberes, em sua maior parte.
Neles, muitas vezes Carroll não se satisfazia só com o aspecto natural da foto. Tinha de criar um artifício. O cume desse artifício está no retrato da menina Alice travestida de pedinte, com a mão estendida. Nele, Alice Liddell está com um vestido rasgado, mostrando os braços e as pernas, com os pés descalços, uma das mãos fechada na cintura e a outra aberta como quem pede esmola, o corpo encostado a um muro limoso e folhagens, bastante sugestivo. Além de erotização explícita, há um fundo pervertido em contraste com o rosto infantil.
Ainda que este seja um exemplo máximo, não é único nesse universo visual. Numa bela foto de Mary Ellis, ela se recosta num tronco rugoso e folhagens, mas aí a erotização talvez fosse inconsciente. Não será este, certamente, o caso de uma foto de Xie Kitchin, em que ela repousa, dormindo, reclinada sobre um sofá, com o vestido abaixado, mostrando os ombros nus, propositalmente descobertos (como também se vê na foto de Alice ”mendiga” (com a mão pousada sobre o regaço). Xie, aliás uma favorita, aparece em outras fotos sugestivas, uma reclinada num sofá com um livro no regaço, outra também dormindo na cama e finalmente de pé contra a parede, ou com um violino. Uma foto de Irene Mac Donald parece bem inocente. Ela está de camisola, escova numa das mãos e um espelho noutra, que pousa sobre uma cadeira. Mas os cabelos estão significativamente soltos, os pés descalços. Viramos a página do álbum de fotos publicado numa edição européia de luxo e nos defrontamos com a mesma Irene reclinada num sofá. Não está descalça, nem dorme. Mas a expressão do seu olhar perdido está entre o sono e o êxtase. Não se pode negar a relação estreita entre o sono, o ato de se estar deitado sobre travesseiros ou inclinado sobre almofadas em um sofá e o erotismo. Mary Millais, por exemplo, está recostada num chão que parece de grama ou de tapete felpudo. Ela se encosta onde duas paredes se encontram, com uma expressão indefinível. Detalhe: a veste parece uma camisola, como era também uma camisola a veste de Mary Mac Donald. Uma ”desconhecida” também está reclinada no canto de um sofá. Não é uma obsessão? Também os recantos, a posição inclinada e a expressão longínqua, próxima do êxtase, são visíveis obsessões eróticas. Nada disso se encontra nas fotos comuns de familiares, pessoas distintas ou renomadas que também constituíam o alvo das fotos do ”reverendo”, que se dizia ”praticamente um leigo” no final da sua vida .
Carroll tem, sem dúvida, muitas obsessões expressas nessas fotos, como os sofás, os muros e os recantos já referidos. Suas fotos valeriam uma analise simbólica mais detalhada. Além disso, ele se esmera em fantasias de travestimento, como a de Alice Liddell ”vestida” de mendiga. Xie Kitchin, um modelo multiforme, aparece ora como ”Chinesa”, ora como ”russa”, ora como ”cozinheira”, ora afundando numa esquisita poltrona triangular, ora com os pés descalços, uma espécie de pá e um cesto. Nas muitas fotos de Xie, ela jamais está sorrindo. Há um detalhe significativo: as meninas são sérias, em sua maioria. E certamente é desta ”seriedade” que emana a erotização fisionômica, com olhares mortiços entre o sono e outra coisa. O grande retratista mostrou a coerência profunda entre sua arte fotográfica e a de escritor. Carroll não é jamais um fotógrafo do instantâneo e da naturalidade. É o anti-estilo Cartier-Bresson. É algo como o contraste, no cinema, entre o fresco e espontâneo (nas aparências) neo-realismo italiano e o recherché cinema noir americano. Carroll está visivelmente do lado deste último. A sua fotografia é, como a sua escrita, uma arte intrinsecamente recherché e suas composições estudadas seguem o princípio do jogo ficcional: é preciso fingir algo que não é para se chegar a uma outra verdade. Essas inumeráveis meninas são, sem dúvida, uma arte da variação […]
(Trecho divulgado pela Revista Época)
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Autor: Sebastião Uchoa Leite
Editora: CosacNaify
Preço: R$ 48,30 (192 págs.)