O legado de Eszter, do húngaro Sándor Márai, revive o denso espaço de um dia, o mais importante da vida de Eszter, uma senhora que espera já muito pouco da vida. Ela e a criada, Nunu, ao receberem um telegrama de Lajos, anunciando que retornará à pacata aldeia depois de uma ausência de vinte anos, alarmam-se, com a forte presença da iminência de perigo. Sedutor, Lajos fizera promessas de amor que Eszter verdadeiramente correspondera, porém ele desposou sua irmã mais nova; falsificador de promissórias, fugitivo, capaz de mentir com lágrimas de verdade, ludibriara também aos pais e irmãos de Eszter, que entregaram-lhe quase tudo o que tinham.
Traduzido diretamente do húngaro por Paulo Schiller, o livro foi publicado em 2001 pela Companhia das Letras.
A prosa limpa e poética de Márai cria aqui personagens fortes e uma imagem irônica da mesquinhez dos relacionamentos. Um livro que mostra que “as decisões solenes e definitivas, que traçam o relevante na linha do destino de nossas vidas, são bem menos conscientes do que acreditamos mais tarde, nos momentos de rememoração e lembrança”.
A personagem Eszter introduz sua narrativa, o ímpeto que a leva a escrever, sentindo-se no abismo de sua vida: “Não sei o que Deus ainda reservou para mim. Entretanto, antes de morrer, quero contar a história do dia em que Lajos esteve comigo pela última vez e me roubou. Adio estas anotações há três anos. Sinto agora como se uma voz, a que não consigo me opor, me incitasse a narrar os acontecimentos daquele dia – e tudo o que sei sobre Lajos – pois esse é meu dever e não me resta muito tempo. Essa voz é inequívoca. É por isso que obedeço, em nome de Deus”.
Trata-se do sentimento insistente de que algo lhe foi roubado. Sentimento que persiste porque é acompanhado pela esperança de uma restituição, eternamente adiada. A maneira triste e ambígua, porque receptiva, com que Eszter recebe aquele que mais ocupou-lhe a memória, como um amor que não o foi, mostram um sentimento de inferioridade irresoluto, amalgamado à um consentimento consciente: aceitação da armadilha, mesmo vendo-a nitidamente.
O romance é encaminhado pelo discurso verossimilhante, que parece fazer com que se escute as palras proferidas pelas personagens.
A jornalista Sylvia Colombo, em artigo escrito ao jornal Folha de São Paulo propõe uma interpretação da vida de Sándor Márai à luz do romance: “Curiosamente, é possível arriscar um paralelo entre a vida do escritor húngaro e o desfecho de “O Legado de Eszter”, romance que escreveu em 1938. Márai (1900-1989) foi um dos autores húngaros mais prestigiados do país antes da Segunda Guerra. Em 1948, inconformado com a ingerência soviética na Hungria, deixa o país. Vive alguns anos na Itália, depois fixa residência em San Diego, na Califórnia. Segue escrevendo, sempre em húngaro, e recusa-se a voltar à Hungria antes do último soldado soviético deixar o país. Em 1989, mesmo ano em que a queda do Muro de Berlim poderia fazê-lo vislumbrar uma oportunidade de voltar à sua terra natal, Márai suicida-se, aos 89, meses depois da morte de sua mulher. Como Eszter, de quem investiga as ambiguidades, também ele pode ter considerado difícil mudar o enredo da existência no último ato”.
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Trecho:
“É simples”, disse. “Você logo compreenderá. Você foi, ou teria sido, o que me faltava: o caráter. Sabemos dessas coisas. O homem que não tem caráter ou carece de um caráter perfeito é um pouco aleijado do ponto de vista ético. Existem homens assim. Como criatura perfeita nos demais aspectos, a quem falta uma das mãos ou uma perna. Ganham uma extremidade artificial e de repente tornam-se aptos para o trabalho, úteis ao mundo. Não se irrite com a comparação, mas você teria sido minha extremidade artificial…Minha ética artificial. Espero não ser ofensivo”, disse afetuoso, inclinando-se em minha direção.
“Não”, disse,”não acredito nisso, Lajos. Não se pode suprir caráter. Não se pode transferir ética de uma pessoa a outra por meio de um transplante artificial. Trata-se de princípios. Sinto muito.”
“Não são apenas princípios teóricos. Veja, a ética não é qualidade herdada, mas adquirida. O homem nasce sem ética. A ética dos selvagens ou das crianças é diferente daquela de um magistrado de sessenta anos da cúria de Viena ou Amsterdam. Adquirimos a ética ao longo da vida, como os modos ou a cultura.” Falava em tom didático, de entendido. “Há pessoas de caráter mais sensível, pessoas de caráter genial, como grandes músicos ou poetas. Você também é dessas pessoas, Eszter; não, não proteste! É o que sentia em você. Em questões de ética sou surdo, quase analfabeto. Foi por isso que corri ao seu encontro; creio que principalmente por isso.”
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Autor: Sándor Márai
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 23,80 (120 págs.)