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Escritos de cineastas brasileiros

19 fevereiro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

O cinema é uma arte que sintetiza qualidades plásticas e cênicas, por um lado, literárias e críticas, por outro. Sobre esse segundo aspecto repousam as reflexões profundas daqueles que fazem de suas expressões cinematográficas o resultado de suas impressões e opiniões sobre o mundo e o tempo em que vivem. Os escritos dos cineastas em geral possuem um interesse por revelarem o cerne das ideias que suas imagens mostram, de maneiras complexas e, por isso, muitas vezes de compreensão geral sutil.

 

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Milton Ohata (org.), “Eduardo Coutinho”

O livro Eduardo Coutinho, organizado Milton Ohata, reúne dois ensaios e dez entrevistas, além de dezenas de textos de crítica escritos por Eduardo Coutinho para o Jornal do Brasil entre os anos de 1973 e 74. A segunda parte do livro é dedicada a depoimentos de colaboradores que contam suas experiências de trabalho com o diretor. A terceira parte do livro é uma coletânea de resenhas de época, bem como de textos, todos inéditos, sobre a filmografia de Coutinho, escritos por cineastas e críticos de diversas gerações.

A compilação foi concebida para contemplar diferentes áreas de interesse, quer para quem queira conhecer como Coutinho pensava o próprio trabalho, para quem deseja acompanhar a construção de seu raciocínio cinematográfico, também para quem tem curiosidade sobre os filmes e seus bastidores. Segundo comentário do organizador, o conjunto dos textos mostra a experiência de Coutinho como espectador, e como essa experiência nunca dissociou-se da experiência enquanto cineasta. Segundo Ohata, “seus textos de crítica mostram quão armado ele estava para realizar bem”.

Numa entrevista, concedida em julho de 2009, Coutinho disse: “O meu cinema se interessa pelo que é precário. É um cinema que fala sobre o que é fazer cinema. Meu cinema não é heroico nem tem heróis. Muitos dizem que eu abandonei a política, que não faço cinema político. Eu sempre odiei o cinema militante”. Já em um catálogo, para o Festival Cinéma du Réel, em 1992, analisou: “Creio que a principal virtude de um documentarista é a de estar aberto ao outro, a ponto de passar a impressão, aliás verdadeira, de que o interlocutor, em última análise, sempre tem razão. Ou suas razões. Esta é uma regra de suprema humildade, que deve ser exercida com muito rigor e da qual se pode tirar um imenso orgulho”.

O livro foi feito 2013, em homenagem ao cineasta, em comemoração aos seus 80 anos de idade. Eduardo Coutinho é considerado o maior documentarista brasileiro da história.

 

 

imaginario nas ciencias sociais

João Moreira Salles, “A dificuldade do documentário”, in: Cornelia Eckert, Jose de Souza Martins, Sylvia Caiuby Novaes (orgs.), “O imaginário e o poético nas Ciências Sociais”

João Moreira Salles é conhecido como um dos principais documentaristas brasileiros. Em “A dificuldade do documentário”, texto publicado na coletânea O imaginário e o poético nas ciências sociais, organizada por José de Souza Martins, Cornelia Eckert e Sylvia Caiuby Novaes, o cineasta reflete sobre a complexidade da expressão visual no filme documentário. O artigo esmiúça os sentidos latentes à forma cinematográfica documental, levantando questões sobre a possibilidade de encenação, sobre o compromisso com a verdade, sobre o que seja a realidade e sobre o pacto que se instaura entre espectador, diretor e personagem. Segundo ele, mais do que manipular estratégias narrativas, o que determina que um filme seja um documentário é a maneira pela qual o filme é visto.

Moreira Salles inicia seu artigo expondo a natureza da dificuldade do documentário: “Num primeiro exame, verificamos que o documentário não é uma coisa só, mas muitas”. Não conta com uma convenção estilística, nem segue padrões narrativos relativamente homogêneos; na verdade, “em princípio, tudo pode ou não ser documentário, dependendo do ponto de vista do espectador”. Segundo ele, a “compreensão não-ficcional nos permite perceber o que há de indicial em toda imagem, até mesmo naquelas que pertencem ao campo da ficção. Já o artefato não-ficcional — e o documentário certamente é um deles — independe dos usos individuais que se façam dele. Ele é uma convenção, um fenômeno social”. Não se trata, porém, de arqueologia ou antropologia, o documentário é antes resultado de imaginação: “Ele não descreve; constrói” – guiados por uma necessidade interna, pois “para um documentarista, a realidade que interessa é aquela construída pela imaginação autoral, expressa tanto no momento da filmagem como no processo posterior de montagem”.

 

 

neves

David E. Neves, “Telégrafo visual”

Telégrafo visual – crítica amável de cinema reúne quase uma centena de textos raros, muitos inclusive inéditos, de David E. Neves (1938-1994), crítico que tornou-se diretor e figura considerada de relevância central na construção do Cinema Novo. Organizados por Carlos Augusto Calil, são textos escritos entre 1957 e 1990, que, com sua crítica aguda, tratam do cinema, bem como de suas relações com literatura, música, fotografia, política, cultura. Ao longo dos escritos, Neves apresenta o Cinema Novo visto de seu âmago e sob seu olhar apurado e exigente. Como crítico, ele realizou uma verdadeira militância pela discussão e desenvolvimento do movimento cinematográfico vanguardista brasileiro.

Discípulo de Paulo Emílio Sales Gomes, desenvolveu uma crítica que se colocava como diálogo: apesar de militante, longe de ser sentenciosa, é tida como uma crítica esparsa com toques de brilhantismo analítico – segundo o crítico José Geraldo Couto: “por exemplo, a definição de Antonioni como “o primeiro eremita urbano”. Outras observações importantes e originais do crítico dizem respeito à persistência de elementos da chanchada em certos filmes de Nelson Pereira dos Santos ou à simplificação radical que os cineastas “underground” teriam feito de princípios estéticos do Cinema Novo. São ideias apenas esboçadas, mas que poderiam suscitar teses inteiras”.

Como diretor, seus filmes mais conhecidos são Memória de Helena (1969) e Muito prazer (1979).

 

 

água

Eduardo Escorel, “Adivinhadores de água”

Eduardo Escorel, em Adivinhadores de água, afirma a necessidade do diferente e do nacional, desprezando a imagem globalizada e comercial em favor de “núcleos isolados de criatividade e talento”, que, segundo ele, seriam capazes de manter a continuidade histórica de um cinema genuinamente brasileiro.

Sua crítica nacionalista alinha-se a Mário de Andrade e Paulo Emílio Salles Gomes. Escorel faz a leitura da obra de amigos que tornaram-se mestres, como Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman e, mais recentemente, diretores como Tata Amaral, Lírio Ferreira e Paulo Caldas.

O título do livro alude ao caso de um homem que adivinhava, no sertão, lugares para cavar poços para encontrar água: Escorel faz dele metáfora para pensar o cinema nacional. Adivinhadores de água reúne artigos esparsos, de uma intelectualidade exigente para analisar os rumos do documentário ou, por exemplo, comentar as relações entre literatura e cinema.

Um pensamento franco, que traça panoramas conjunturais. Uma de suas definições sobre o programa para o cinema brasileiro é: “Um cinema que aspira conquistar sua própria autonomia deve aceitar que não tem modelos a seguir e procurar criar sua própria saída”.

Sua produção cinematográfica é marcada principalmente pela direção de “Lição de Amor” e “Ato de Violência” e pela montagem “O Padre e a Moça”, “Terra em Transe”, “Macunaíma” e “São Bernardo”.

 

 

glauber

Glauber Rocha, “Revolução do cinema novo”

Da coleção Glauberiana, preparada pela CosacNaify há já mais de uma década, só resta disponível este fascinante Revolução do cinema novo. A proposta da coleção foi reeditar toda a obra crítica e literária de Glauber Rocha (1939-1981). Com coordenação editorial de Augusto Massi e Ismail Xavier, foram publicados três volumes.

Revolução do cinema novo, escrito pelo diretor após a finalização de A idade da Terra, seu último longa-metragem, em 1980, é considerado uma obra testamento. O livro é dividido em duas partes distintas. A primeira reúne artigos publicados ao longo dos anos anteriores e retoma debates e entrevistas. Nela, estão incluídos textos fundamentais como o célebre artigo “Eztetyka da fome”, síntese sobre o cinema novo aos europeus, apresentado na Retrospectiva do Cinema Latino-Americano, em Gênova, em 1965 e “Eztetyka do Sonho”, de 1971. A segunda parte apresenta reflexões e notas biográficas escritas em 1980, uma “memória afetiva” que se refere diretamente a personagens da vida cultural da época. Os textos passaram por rigorosa revisão e incluiu-se um índice onomástico. Com prefácio do autor inédito em livro e artigo de Cacá Diegues escrito à época do cinema novo, a edição é totalmente ilustrada.

“Dispensando a introdução afirmativa que se tem transformado na característica geral das discussões sobre América Latina, prefiro situar as relações entre nossa cultura e a cultura civilizada em termos menos reduzidos do que aqueles que, também, caracterizam a análise do observador europeu. Assim, enquanto a América Latina lamenta suas misérias gerais, o interlocutor estrangeiro cultiva o sabor dessa miséria, não como sintoma trágico, mas apenas como um dado formal em seu campo de interesse. Nem o latino comunica sua verdadeira miséria ao homem civilizado nem o homem civilizado compreende verdadeiramente a miséria do latino” [trecho de Estética da Fome – ou Estétyka da Fome, conforme grafia de Glauber Rocha]

 

 

O estilo narrativo do cinema dialoga com o estilo interpretativo do texto. De maneiras complementares, ambos decifram a contingência da vida, sintetizam ideias, identidades. Mais do que meramente documentais, os textos por si mesmos interessantes, obras de criadores que, como a sétima arte exige, combinam percepções abrangentes e plurivalentes.

 

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