“Nosso reino é o do entre-dois” [1]
O comentário de Philippe-Alain Michaud sobre a obra, a vida e as ressonâncias da “história de arte sem palavras” de Warburg é vertiginoso desde o título e, justamente, pelo ponto de vista que ele imediatamente esclarece: Aby Warburg e a imagem em movimento. O movimento como tópica da análise contorce-se como as serpentes do Laocoonte ou dos índios pueblos: é metafórico e literal, geográfico e histórico, diz respeito aos movimentos de expressão e de orientação do homem no mundo, culturais ou religiosos. A considerar a estrutura do livro, Michaud traça um roteiro e movimenta-se geograficamente, nomeando seus capítulos à guisa dos lugares que foram cenário para os estudos de Warburg e por ele visitados. Nova York, Florença, Hamburgo, Novo México: se a simples justaposição dos nomes dos lugares já suscita um deslocamento cartográfico desde o sumário, o autor ainda desdobra em distintos escopos a ideia de movimento com os predicados dos títulos: “Nova York: o palco cinematográfico”, por exemplo. Também são “palco”, respectivamente “teatral” e “da história da arte”, Florença e Hamburgo. Florença é ainda “circulação dos corpos móveis” e “espaço da pintura”, em capítulos em que Michaud segue a interpretação de Warburg a respeito das rupturas na transmissão das formas na pintura do Quattrocento: mote warburguiano desde a análise das obras de Botticelli, sob a representação do movimento na arte renascentista sobrevive o indício de um movimento cultural mais profundo, a saber, a mistura de diferentes níveis de cultura, de referências mitológicas permeadas “ao tecido da vida cotidiana”[2], mistura complexa e tensa que é fruto paradoxal de um movimento de aproximação e de distorção da Antiguidade e que revela pathos primordiais da natureza expressiva humana. A interpretação de Warburg sobre os pintores renascentistas desemboca, como mostra Michaud, baseado em anotações dos Bruchstücke[3], em outro movimento, concomitante, no sujeito – tanto enquanto entrada do sujeito individual nas pinturas através da arte do retrato, quanto do sujeito que é expectador e que concatena uma sequência de imagens, movimento interpretativo a que Warburg chama “perda da contemplação serena”[4].
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