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Tradição e traumatismos

17 fevereiro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Antonio Candido é um dos mais relevantes intelectuais do país. Dentre suas obras, consideradas estudos críticos fundamentais para a teoria literária, A formação da literatura brasileira é uma referência que vem dando as diretrizes para os estudos de literatura no país, das escolas às universidades. Candido iniciou seus estudos na área de sociologia e essa bagagem teórica conferiu a suas reflexões literárias um dimensionamento mais abrangente. O contrário também pode ser dito: sua tese Os parceiros do Rio Bonito surgiu do desejo de analisar as relações entre literatura e sociedade, partindo de uma pesquisa sobre a poesia popular do Cururu – uma dança cantada do caipira paulista – cuja base é um desafio sobre os mais vários temas, em versos de rima constante, denominada carreira, que muda depois de cada rodada. 

Sua carreira acadêmica teve início como assistente do professor Fernando de Azevedo na cadeira de Sociologia II, na Universidade de São Paulo, em 1942. Em 1945, aprovado no concurso para a cadeira de Literatura Brasileira da mesma, obteve o título de livre-docente com a tese Introdução ao método crítico de Sílvio Romero. Paralelamente à vida universitária, foi crítico literário da revista Clima (1941-44) e dos jornais Folha da Manhã (1943-45) e Diário de S. Paulo (1945-47), assinando um rodapé semanal com o título “Notas de crítica literária”. Em 1954, obteve o grau de doutor em Ciências Sociais com a tese Os parceiros do Rio Bonito. A partir de 1958, ele optou definitivamente pela literatura. Depois da defesa e da aprovação da tese, o texto foi deixado de lado por alguns anos pelo autor, que entretanto manteve o projeto de melhorá-lo; isso, porém, acabou não acontecendo e o livro reproduz a tese de maneira geral tal como foi apresentada.

Os dados numéricos envelheceram, a própria situação estudada se alterou, predominando, atualmente, a tendência para reconstituição do latifúndio como realidade econômica e social, em detrimento da pequena propriedade e do sistema de parceria analisado em Os parceiros do Rio Bonito. O interesse do livro, porém, permanece vivo, enquanto rica descrição de uma realidade humana específica, característica do fenômeno geral de urbanização no estado de São Paulo. O livro contém uma proposta política: recuperar a voz dos “marginalizados da colonização” e defender a inclusão do caipira num mundo que se moderniza por meio da expansão econômica capitalista e causa-lhe mudanças de vida, crise econômica e inclusive a necessidade de elaboração de um novo “ajuste ecológico”. Segundo a tese, a cultura caipira, pressionada pela modernização, “caminha para o fim inevitável” mas é ainda capaz de criar “formas de resistência”. O livro divide-se em três partes: a primeira traça uma reconstrução histórica da sociedade caipira, levantando as relações sociais básicas e os meios elementares de subsistência; a segunda, mais antropológica, descreve técnicas de lida da terra, festas religiosas, dieta dos parceiros de Bofete, no interior de São Paulo; e a terceira, desenvolvida num contexto mais sociológico, analisa como o crescimento da economia capitalista e sua influência são destrutivos à cultura tradicional caipira.

Segundo Luiz Carlos Jackson – autor de A tradição esquecida: Os parceiros do Rio Bonito e a sociologia de Antonio Candido [Belo Horizonte/São Paulo, Ed. da UFMG/Fapesp] –, em artigo publicado na revista Cult, Transpira na décima primeira edição de Os Parceiros do Rio Bonito o que Antonio Candido e os demais participantes do Grupo Clima designaram como “paixão pelo concreto”, uma atitude intelectual rigorosa, apoiada na teoria, mas orientada pela e para a realidade social e cultural”. Para Jackson, apesar do cuidado editorial de ampliação do conjunto fotográfico e dos registros dos “cadernos de campo” preenchidos pelo autor durante a pesquisa etnográfica que deu origem ao livro – que aproximam ainda mais o leitor da experiência sensível da convivência prolongada com os “parceiros”, o grupo que habitava a Fazenda Bela Aliança, situada no município de Bofete (SP) – a maior qualidade do livro é “a de nos fazer viajar pela intimidade do mundo caipira, cuja existência e importância no processo de formação da sociedade brasileira são resgatadas. Nesse passo, um personagem quase esquecido nas grandes “interpretações do Brasil”, em Casa-grande & Senzala, por exemplo, ganha centralidade: o agricultor pobre vinculado à pequena propriedade. Com os Parceiros aprendemos que nas margens da grande propriedade ou longe dela, nas regiões que ela não alcançou, o caipira (ou matuto, sertanejo, caboclo, tabaréu) construiu seu modo de existência sempre digno, embora precário do ponto de vista material”.

Para Enio Passiani, mestre em sociologia pela USP, em análise à tese de Luiz Carlos Jackson, Os parceiros do Rio Bonito é um clássico da sociologia brasileira, por constituir um “estudo das relações possíveis entre a obtenção dos meios materiais de vida e as formas de sociabilidade correspondentes; nesse sentido, as necessidades possuem também um caráter social, pois a vida e a sobrevivência de um determinado agrupamento humano depende do equilíbrio estabelecido entre tais necessidades e os recursos que o grupo dispõe para satisfazê-las”. Passiani pontua que, segundo Jackson, a sociologia proposta por Candido é chamada de “ ‘sociologia dos meios de subsistência’, buscando interpretar todas as dimensões da vida social, a partir da alimentação”. A interpretação de Antonio Candido parte “da análise da situação de crise da cultura caipira, em face da expansão da economia capitalista. No grupo de parceiros estudado, o autor busca diferenciar os fatos que indicam persistência de padrões tradicionais dos que apontam para a alteração”. Nas palavras de Passiani, “Jackson sublinha que Candido tem como preocupação entender não apenas a cultura e a sociabilidade caipiras em Bofete, mas as peculiaridades da formação social e histórica de São Paulo e do Brasil. Trata-se de uma análise que parte de uma visada microscópica, centrada no interior do país, e acaba oferecendo um rendimento macroscópico, ou seja, uma “interpretação ampla da sociedade brasileira” que leva em consideração suas especificidades históricas. Não há como não apontar a importância da história no pensamento de Antonio Candido, para quem os fatos sociais só podem ser apreendidos como algo dinâmico, no interior de sua dimensão histórica – compreender o presente exige a investigação do passado”.

            Os parceiros do Rio Bonito termina com uma posição política, um apelo para que planejadores considerem variáveis culturais, inclusive no que tange ao problema da reforma agrária – “Sem planejamento racional, a urbanização do campo se processará cada vez mais como um vasto traumatismo cultural e social, em que a fome e a anomia continuarão a rondar o seu velho conhecido”.

 

OS PARCEIROS DO RIO BONITO

Autor: Antonio Candido
Editora: Ouro sobre Azul
Preço: R$ 45,05 (336 págs.)

 

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