Avenida Niévski, do russo Nikolai Gógol, é um dos contos mais representativos de sua série de histórias petesburguesas, escritas entre 1832 e 1842. No Brasil, o conto ganhou em 2012 edição cuidadosa individualizada, com tradução de Rubens Figueiredo, pela Cosac Naify. Trata-se de uma publicação primorosa.
São Petesburgo, à época, capital do Império Russo, encontra na Avenida Niévski, sob a prosa precisa e crítica de Gógol, uma metáfora de si, enquanto representação de dinâmica de valores. A via é a um só tempo caminho, vitrine e motivo de inspiração. O espaço urbano como centro da narrativa, pautado por seu cotidiano, ganha ares fantásticos e absurdos. A avenida determina o destino das personagens, o tenente Pirogóv e do jovem pintor Piskarióv, que se deixam levar pelos encantos de duas passantes.
Conforme analisa Manuel da Costa Pinto, em resenha escrita para o jornal Folha de São Paulo: “Grotescos, os personagens são fantoches do homem moderno, atarantado pelos diferentes apelos da nascente metrópole. Em termos literários, o conto é precursor de “O Homem da Multidão”, de Poe (cujo narrador segue um anônimo pelas ruas de Londres), e dos “Pequenos Poemas em Prosa”, em que Baudelaire associa o belo à experiência de choque da modernidade”. Para Costa Pinto, porque São Petersburgo foi projetada como modelo e representação, simbólica e efetiva, da modernização czarista, seu cosmopolitismo “sucumbe a um vetor mais forte: o ilusionismo. O narrador associa as quinquilharias expostas nas vitrines ao demônio que, todas as noites, acende os lampiões da cidade, “para mostrar tudo sob um aspecto falso”. Segundo o crítico, no conto, “o autor satírico-fantástico ressurge como anatomista do fetichismo da mercadoria e da alienação”.
O projeto gráfico da edição é interpretativo. Segundo a editora Paula Colonelli, conforme conta Sergio Maduro em artigo à Gazeta Russa, o projeto buscou “um diálogo entre forma e conteúdo. É uma experiência de leitura, não é só o livro visto como fetiche, como livro-objeto”. Para o mesmo artigo, também foi entrevistada a professora Arlete Cavaliere, que analisa: “Gógol é um escritor absolutamente inusitado, um grande provocador que desestabiliza a língua russa. Ao traduzi-lo, estamos diante das mesmas dificuldades da tradução do texto poético”. O texto é composto, na presente edição, com gravuras da década de 1830, que reproduzem graficamente uma caminhada pela Avenida Niévski. A edição é acompanhada ainda com um segundo volume, “Notas de Petesburgo de 1836”, crônica em que Gógol discute o cenário cultural da cidade.
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Não há nada melhor do que a Avenida Niévski, pelo menos em Petersburgo; para essa cidade ela representa tudo. Com o quê não brilha essa rua – beldade de nossa capital? Sei que nenhum dos pálidos funcionários públicos que a habitam, trocaria a avenida Niévski por qualquer vantagem que fosse. Não só quem tem vinte e cinco anos de idade, lindos bigodes e sobrecasaca admiravelmente benfeita, mas até quem tem pelos brancos que repontam no queixo e a cabeça lisa como uma travessa de prata se entusiasma com a avenida Niévski. E as senhoras! Ah, para as senhoras, a avenida Niévski é ainda mais agradável. Mas para quem ela não é agradável? Basta entrar na avenida Niévski para sentir o aroma de um passeio. Mesmo que tenhamos algum assunto urgente e incontornável, ao entrar na avenida certamente esqueceremos tudo. Aqui é o único lugar onde as pessoas aparecem não por necessidade, um lugar para onde são atraídas não por uma obrigação, nem pelo interesse comercial, que arrebata Petersburgo inteira. A pessoa que se encontra na avenida NIévski parece menos egoísta do que nas ruas Morskaia, Gorókhovaia, Litiéinaia, Mechánskaia e em outras ruas onde a ganância, a cobiça e a necessidade se manifestam nos pedestres e nas pessoas que passam em carruagens e em caleches abertas. A Avenida Niévski é a via de comunicação obrigatória de Petersburgo. Aqui, o morador de Petersburgo ou de Víborg, que há alguns anos não revê um amigo de Piéski ou do portão de Moscou, pode estar seguro de que o encontrará sem falta. Nenhum guia de ruas e nenhuma agência de informações fornece notícias tão confiáveis como a avenida Niévski. A todo-poderosa Avenida Niévski! A única alegria do pobre num passeio em Petersburgo! Como são limpas e varridas suas calçadas e, Deus, quantos pés deixaram nelas seus rastros. A bota suja e malfeita do soldado reformado sob cujo peso até o granito parece rachar, e o sapatinho em miniatura, leve como fumaça, da jovem senhorita que vira a cabecinha para as vitrines reluzentes das lojas assim como o girassol se vira para o sol, e o sabre tilintante do sargento-mor cheio de esperança, que o arrasta raspando com força no chão – todos descarregam sobre ela o poder da força ou o poder da fraqueza. Que veloz fantasmagoria se cumpre aqui no decurso de um só dia! Quantas mudanças ela sofre em apenas vinte e quatro horas! Comecemos pelo início da manhã, quando Petersburgo inteira sente o cheiro dos pães quentes, saídos do forno, e está cheia de velhas de vestidos e casacos esfarrapados que cumprem sua ronda pelas igrejas e atrás dos passantes piedosos. Nessa hora, a avenida Niévski está vazia: os gordos proprietários das lojas e seus balconistas ainda dormem em seus camisolões holandeses ou ensaboam sua honrada bocheca e bebem o café; os mendigos reúnem-se nas portas das confeitarias, onde um sonolento Ganímedes, que ontem voava como uma mosca para servir o chocolate, arrasta-se com uma vassoura na mão, sem gravata, e arremesa para eles pasteizinhos ressecados e restos de comida. Pessoas necessitadas arrastam-se pelas ruas: às vezes, passam mujiques russos, afobados para chegar ao trabalho, de botas tão sujas de cal que nem mesmo o canal Ekatierínski, famoso por sua limpeza, seria capaz de lavá-las. Nessa hora, habitualmente, não convém que as senhoras saiam, porque o povo russo gosta de empregar expressões tão brutas como certamente elas não ouvem nem no teatro. Às vezes um funcionário sonolento arrasta-se com uma pasta debaixo do braço, caso a avenida Niévski esteja no caminho de sua repartição. Pode-se afirmar com segurança que nesse horário, ou seja, antes do meio-dia, a avenida Niévski não é a meta de ninguém, serve apenas de meio: aos poucos, enche-se de pessoas que têm seus afazeres, suas preocupações, seus aborrecimentos, mas que não pensam nela em absoluto. Um mujique russo fala de uns tostões, ou de sete moedinhas de cobre, um velho e uma velha agitam as mãos ou falam sozinhos, às vezes com gestos muito imporessionantes, mas ninguém lhes dá ouvidos nem zomba dele, exceto alguns meninos de casaquinhos coloridos, que correm cmo raios pela avenida Niévski, com frascos vazios ou sapatos engraxados nas mãos. Nessa hora, não importa como você esteja vestido, ainda que, em vez de chapéu, traga um quepe na cabeça, ainda que a gola se apresente distante demais da gravata – ninguém repara nisso.
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Autor: Nikolai Gógol
Editora: Cosac Naify
Preço: R$ 34,93 – 2 volumes: 96 páginas do primeiro volume [Avenida Niévski] e 32 páginas do segundo volume [Notas de Petersburgo de 1836]