Alvo de preconceito e estigma canonizados, os ciganos, porém, mantém sua marginalidade por entenderem-na como necessária para evitar a contaminação com a impureza – mahrime – daqueles que não são ciganos, para manterem seus costumes e suas tradições. A pátria dos ciganos é a sua língua –romani – e, seu lugar, é a extensão da memória dos ancestrais. A história dos ciganos é repassada pela oralidade. Em Enterrem-me de pé, estudo sociológico e histórico sensível e interessante, a jornalista Isabel Fonseca desvela um mundo escondido, a um só tempo ignorado e secreto, perseguido e oculto, resgatando a presença cigana na Europa centro-oriental – sobretudo Romênia, Albânia e Bulgária – e sua rica cultura.
A autora largou emprego e rotina para ir viver entre os ciganos e descobrir a origem e destino pelo mundo desse povo envolto em mistério e em histórias. O resultado é o presente livro, publicado pela Companhia das Letras em 1996 e esgotado.
Comparando os ciganos aos judeus, Fonseca afirma que, enquanto os segundos fizeram uma intensa “indústria da memória”, os primeiros fortaleceram sua “arte de esquecer”. Os ciganos são, segundo a autora ela, um povo invisível, “apesar das roupas coloridas das mulheres querendo ler a sorte na palma da mão”. Para ela, a perseguição pela qual os judeus passaram na Segunda Guerra, é passada pelos ciganos ao longo de toda sua história.
Segundo Helena Sut, em análise publicada na Carta Maior, o “romani é uma língua falada. Não há dicionários ou certezas quanto à grafia. A maioria dos ciganos é analfabeta o que explica a ausência de livros literários e didáticos em romani. […] Contudo, encontramos Papusza, nome cigano de Bronislawa Wajs, que significa “Boneca”. Papusza era uma cigana polonesa nômade, nascida no início do século XX, que integrava uma caravana (Kumpania) de harpistas. Ela, transgredindo as regras, aprendeu a ler e escrever escondida e, em 1949, teve seus poemas descobertos e traduzidos pelo poeta Jerzy Ficowski. Papusza escrevia e cantava sobre suas vivências. Ela deu um testemunho imperioso sobre o “porraimos” (a devoração), extermínio dos ciganos nos campos de concentração nazistas, e sobre a vida escondida nas florestas durante a guerra na longa balada intitulada “Lágrimas de Sangue: tudo o que passamos sob o domínio alemão em Volhynia nos anos 43 e 44”. Para Sut, “Isabel Fonseca descobriu que a melhor forma de conseguir respostas dos ciganos é não fazer perguntas. Como uma observadora silenciosa, vivendo entre eles, resgatou a cultura milenar, a exclusão das chamadas minorias raciais e a inserção de ciganos instruídos e sofisticados nos contextos intelectuais mundiais, lutando pelo reconhecimento dos direitos humanos do povo cigano e pela valorização da sua cultura, como, por exemplo, o etnólogo Andrzej Mirga que ressuscitou Papusza num filme e numa série de concertos e o ativista Nicolae Gheorghe que trouxe a causa dos ciganos para o cenário internacional”.
Marcelo Rezende, em artigo escrito à época do lançamento do livro para o jornal Folha de São Paulo, conta: “Poucos deram atenção a seu trabalho, uma gigantesca tentativa de dar voz a um povo que sempre se notabilizou pelo silêncio. Até mesmo depois de terem sido assassinados aos milhares pelos nazistas durante a Segunda Guerra. “Enterrem-me de pé porque passei toda a minha vida de joelhos”, diz um dos entrevistados de Isabel”. Em entrevista concedida pela autora ao jornalista, ela disse: “[…] os ciganos têm de sobreviver a seu próprio modo. E isso nos leva a uma importante questão. Como sobreviver sem uma nação, uma terra, ou livros? O que é sobreviver então? […] Conseguir permanecer é ainda a grande questão”.
ENTERREM-ME DE PÉ – A LONGA VIAGEM DOS CIGANOS
Autor: Isabel Fonseca
Editora: Companhia das Letras
Preço mínimo: R$ 30,00 (368 págs.)
[disponível apenas em sebos]