O poema Um lance de dados, de Mallarmé, ganhou nova tradução, realizada por Álvaro Faleiros e publicada pela Ateliê Editorial. O tradutor procurou estabelecer um diálogo com a miríade de trabalhos dedicados ao poema, em especial a consagrada tradução feita anteriormente por Haroldo de Campos [Perspectiva, 1977], que apresentou de maneira especial Mallarmé ao público leitor brasileiro. A cuidadosa edição, bilíngue, conta com um texto de apresentação da proposta de tradução, escrito por Faleiros – seu percurso concentra-se no aspecto tipográfico do poema, o que desconsidera, em parte, áreas das subdivisões prismáticas que permeiam o texto. O volume traz também uma leitura crítica do poema realizada por Marcos Siscar, bem como o prefácio, que acompanha o poema desde sua primeira edição, introduzido por Mallarmé e seguido do pedido do autor para que, logo após sua “inútil leitura”, fosse pelos leitores esquecido. Paradoxalmente, o prefácio é um verdadeiro programa da “nova arte” poética inaugurado pelo poema. Nesse prefácio, Mallarmé avisa: a diferença “de caracteres de impressão entre o motivo preponderante, um secundário e outros adjacentes, dita a importância de sua emissão oral”.
Um lance de dados, longo poema de versos livres e tipografia revolucionária, desempenhou um papel fundamental na evolução da literatura no século XX.
Segundo Marcos Siscar, “Mallarmé não é apenas um poeta hermético, no sentido do ocultamento ou do ciframento de significados (como queriam as vanguardas do início do século xx), nem exatamente um poeta experimental (ao gosto das vanguardas de meados do século). Historicamente, sua recepção agenciou essas leituras. […] A dificuldade e a estranheza de Mallarmé nos interessariam, hoje, por motivos diferentes daqueles que a destacaram no século passado”.
Nas palavras de Júlio Castañon Guimarães, “a tradução realizada por Álvaro Faleiros implica (não apenas no texto em que comenta e esclarece seu trabalho, mas no próprio exercício de traduzir) uma benvinda e oportuna renovação e retomada da discussão sobre a constituição e as consequências desse poema, quando desse modo a atividade de tradução se revela também como leitura, interpretação, crítica, criação”.
Stéphane Mallarmé (1842-1898) inaugurou questões e possibilidades para a poesia moderna tão profundas que ainda trabalhadas pela poesia contemporânea. Precursor da poesia concreta, influência decisiva para os poetas futuristas e dadaístas, Mallarmé é sobretudo conhecido como um escritor cuja prosa e poesia primam pela musicalidade e experimentação gramatical.
Como define Augusto de Campos, com Um lance de dados, rejeitando “as esterilizantes formas fixas e o verso-livre (álibi para todas as acomodações), Mallarmé passa a organizar o espaço gráfico como campo de força natural do poema. Vale-se dos mais diversos recursos tipográficos, sempre num plano de funcionalidade, para criar numa constelação de relações temáticas (que chama de “subdivisões prismáticas da Ideia”). Com esse processo, pode-se dizer que Mallarmé, colocando “em situação” a sua própria obra e a poética moderna, “opera, através da poesia, a junção da música com a arquitetura visível”.
Segundo Paz, no ensaio “Signos em rotação”, este poema encerra o período da poesia moderna, caracterizada pelo verso livre e pelo poema em prosa, e inaugura novo período, “que mal começamos a explorar”. Mallarmé “proclama absurda e nula a intenção de fazer do poema o duplo ideal do universo. Por outro lado, Un coup de dés não implica numa renúncia à poesia; ao contrário, Mallarmé nos oferece seu poema nada menos do que como modelo de um gênero novo”. Seu poema concentra a um só tempo o máximo da condensação e da dispersão: simultaneidade temporal e espacial apreendida em poesia. “A negação da negação anula o absurdo e dissolve o acaso. O poema, o ato de lançar os dados ou pronunciar o número que suprimirá o acaso […] é absurdo e não é”. A originalidade do poema repousa, para Paz, no fato de ser um poema crítico, pelo que, justamente, encarna a própria possibilidade de abertura poética ao infinito a cada lançamento de dados: “Poema crítico: se não me engano, a união destas duas palavras contraditórias quer dizer: aquele poema que contém sua própria negação e que faz dessa negação o ponto de partida do canto, a igual distância da afirmação e da negação”. Segundo ele, o “legado a que expressamente se refere Un coup de dês – sem legatário expresso: à quequ’um ambigu – é uma forma; mais ainda, é a própria forma da possibilidade: um poema fechado ao mundo, mas aberto ao espaço sem nome. Um agora em perpétua rotação, um meio-dia noturno – e um aqui deserto. Povoá-lo: tentação do poeta por vir. Nosso legado não é a palavra de Mallarmé e sim o espaço que sua palavra abre”.
O poema desenha um círculo hermenêutico que absorve a história e a devolve, como resposta momentaneamente condensada. Por isso engendra sua própria leitura, como primeiro o interpretou Blanchot. No belo ensaio O livro por vir, ele analisa que o poema contém suas sucessivas interpretações e que nenhuma delas é definitiva: “Tout pensée émet um coup de dés” – disparo do talvez na direção do infinito. Segundo Blanchot, Un coup de dés “é o livro por vir”. Ele resguarda o movimento constante de fim e começo, distância narrativa entrevista pelo canto das Sereias da Odisseia, tempo circular e movediço desdobrado por Proust. Vence o acaso ao mesmo tempo que o canta: “O acaso será vencido pelo livro se a linguagem, indo até o extremo de seu poder, atacando a substância concreta das realidades articulares, não deixar mais aparente senão o ‘conjunto das relações existentes em tudo’. A poesia se torna então o que seria a música, se reduzida à sua essência silenciosa: um andamento e um desdobramento de puras relações, isto é, mobilidade pura”. Ausência de origem, o acaso é determinação do múltiplo e a ele semelhante – um eterno retorno do tempo sobre si mesmo, condensado entre múltiplas possibilidades: possibilidade do pensamento: como o disse Blanchot, “o tempo da exceção, na altitude de um talvez”.
Autor: Stéphane Mallarmé
Editora: Ateliê Editorial
Preço: R$ 40,00 (104 págs.)