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A vida sensível

21 dezembro, 2017 | Por Isabela Gaglianone
Mark Rothko, “Yellow Over Purple”, pintura de 1956

Mark Rothko, “Yellow Over Purple”, pintura de 1956

No profundo ensaio A vida sensível, o filósofo italiano Emanuele Coccia investiga a sensibilidade, a partir do princípio de que o sensível, porque definidor de formas e limites da vida, é imagem. Através deste princípio, Coccia propõe uma nova compreensão da vida animal: segundo ele, a humanidade não é uma das categorias da animalidade, mas o seu aprofundamento, uma faculdade particular da animalidade, caracterizada pela capacidade de se relacionar com as imagens – visuais ou olfativas, gustativas, auditivas, táteis, mentais, que compõem um campo, ao qual chama “medialidade”: para o filósofo, corpo e imagem fazem parte da mesma medialidade, a vida sensível. Aquilo que conhecemos por mundo é esta esfera da sensibilidade, composta apenas por imagens.

Para acompanhar a reflexão do filósofo, deve-se aceitar, portanto, as premissas de que a imagem é o sensível e o homem é um ser sensível que vive na esfera da sensibilidade e, mesmo, por ela. Conforme aponta o escritor e crítico de arte Jean-Louis Poitevin, em artigo publicado pela revista francesa TK-21 La Revue – e apresentado no seminário “‘Vivre comme une image’- Images et politique”, em 2012 –, é possível formular “de maneira humorística uma espécie de silogismo que poderia resumir este livro: a imagem é o sensível, o homem é o sensível, portanto o homem é imagem ou vive como uma imagem”. Viver como imagem, segundo o crítico, é questão técnica e ética, artística e estética.

De certa maneira, Coccia, ainda segundo Poitevin, retoma uma tentativa fenomenológica de dissociar a realidade das coisas da aparência destas mesmas coisas, para além de sua aparição, considerando esta aparição para um eu, assim como ela aparece a este eu; tentativa de descolar, como disse Derrida, a película da aparência e de fazê-la existir entre os dois polos que constituem o sujeito e o mundo [Sur parole, Éditions de l’Aube, 1999]. O sujeito é compreendido como sujeito que conhece e, o objeto, como potencialmente dado a conhecer. As imagens – o sensível – não nascem através de dos processos cognitivos, elas existem, antes, fora de qualquer campo psíquico; é necessário, ao sujeito, o devir do sensível, seu contato com o objeto não é suficiente para produzir percepção; segundo Coccia para que haja sensível, é necessário que exista algo intermediário. Como coloca Poitevin, o que interessa a Coccia em A vida sensível, é compreender o que se passa “entre” os corpos materiais dos objetos e os corpos humanos, que sentem e pensam.

“A vida sensível é a capacidade de fazer as imagens viverem fora de si e, de algum modo, liberar-se delas, de perdê-las sem receio. Na medida em que somos capazes de experiência, já vivemos sempre em outro lugar em relação a nosso corpo orgânico”, afirma Coccia. “A experiência confere um corpo puramente mundano ao vivente. Ela é aquilo que dá concretude ao vivente, como também o que o liga ao mundo, a esse mundo, tal qual ele é aqui e agora, mas também a um mundo tal qual ele poderia ser em outro lugar e em outro tempo. Não fazemos senão apropriar-nos e liberar-nos das imagens”. Para o filósofo, é o sensível que permite que as formas sejam veiculadas, ampliadas, e reproduzidas, “entre nós e o objeto há um lugar intermediário, algo em cujo seio o objeto torna-se sensível, faz-se phainomenon”; a imagem, o sensível, segundo o autor, é “a existência de algo fora do próprio lugar, qualquer forma e qualquer coisa que chegue a existir fora do próprio lugar se torna imagem”. A filosofia, “enfeitiçada pelas faculdades superiores”, como ele critica, “raramente mediu o peso da sensibilidade sobre a existência humana. Esforçando-se por provar e fundar a racionalidade do homem, procurando separá-lo a qualquer custo do resto dos animais, ela frequentemente esqueceu que todo homem vive no meio da experiência sensível e que pode sobreviver apenas graças às sensações”.

De acordo com a pesquisadora Alexandra Filomena Espindola, conforme pontua no artigo “Vida sensível – Vida na arte: imagem, sensação”: “Entre o espectador e o objeto de arte não há uma passividade inconteste nem uma relação direta, mas um mundo, um mundo sensível, um mundo de imagens, como afirma o filósofo italiano […]. Num primeiro momento, essa leitura de Coccia nos dá a impressão de que ele volta ao esquema metafísico, este que se baseia na impossibilidade de contato direto com o ‘real’. Até aí se pode assim entender seu texto, mas o que diferencia Coccia de Platão, por exemplo, é que, enquanto este entende que os sentidos são enganadores e, por isso, o acesso direto com o mundo é ilusório, uma vez que é no mundo das ideias que podemos confiar, Coccia vê que esse ‘real’ é percebido pelas sensações, estas que estão entre nós e o mundo. Esse mundo, essa vida sensível se constitui pelos nossos habitus, nossa participação nos mais diversos campos, mas, a partir e além disso, há entre nós e as coisas a sensação; através dela nos apropriamos do sensível. É ela que não nos deixa passivos diante daquilo que nos olha, e nossa potência de sentir nos faz agitar aquilo que vemos”. Espindola aponta que, para Coccia, “a vida animal é uma potência de sensação”, ou, nas palavras do filósofo, “– a vida sensível em todas as suas formas – pode ser definida como uma faculdade particular de se relacionar como as imagens: ela é a vida que as próprias imagens esculpiram e tornaram possível”. De acordo com Espindola, “é importante esclarecer, e isso nos é bastante pertinente, que, para Coccia, o sensível é a própria imagem e ‘define as formas, as realidades e os limites da vida animal’. Ampliando seu conceito de imagem, Coccia diz que ela é o fora absoluto, visto que está além do seu ser, ou seja, o ser da imagem é forma que está fora do sujeito natural e, ainda, é o ser da estranheza, um estrangeiro. Assim, a imagem é a experiência da exterioridade, forma que vive em outro corpo, em outro objeto”. Segundo Coccia, “vivemos sob a perpétua influência do sensível: cheiros, cores, sensações olfativas, músicas. Nossa existência – dormindo ou em vigília – é um mergulho ininterrupto no sensível. São os sensíveis – as imagens das quais não deixamos de nos nutrir e que não param de alimentar nossa experiência diurna ou onírica – que definem a realidade e o sentido de todo nosso movimento”.

Para o filósofo, “no espelho encontramo-nos sendo uma pura imagem, descobrimo-nos transformados no ser puro imaterial e inextenso do sensível, enquanto nossa forma, nossa aparência, passa a existir fora de nós, fora de nosso corpo e fora de nossa alma. […] A imagem não é senão a existência de algo fora do próprio lugar. Qualquer forma e qualquer coisa que chegue a existir fora do próprio lugar se torna imagem. Nossa forma se torna imagem quando é capaz de viver para além de nós, para além da nossa alma, para além de nosso corpo, sem que ela mesma se torne um outro corpo, já que é capaz de viver como que na superfície de outros corpos”.

Marina Andrade Câmara, em artigo, evoca, para comentar a obra de Coccia, o que Foucault denomina experiência mediana entre utopia e heterotopia; “ver-se no espelho – ‘lá onde não estou’” [Foucault, in “Outros espaços”]; o gesto heterotópico potencializa, segundo Câmara, “a criação efetiva desse não lugar: ‘me permite me olhar lá onde estou ausente: utopia do espelho’ [Idem]. Se a imagem refletida não é vista pelo outro, a obra não é criada. Se para Foucault o caráter espacial das heterotopias se sobrepõe ao temporal, Emanuele Coccia parece ir além, fazendo uma associação direta entre a imagem e o entreponto. Levando-nos a pensar que a imagem pode ser, em si, uma heterotopia, já ela está entre a vida do corpo – do qual é imagem – e a vida do espírito, antes de entrar no reino dos espíritos, das almas, das consciências, ou seja, não sendo nem a forma original nem sua cognoscibilidade, associando a duração da imagem ao eterno, capaz de sobreviver mesmo com a ausência do corpo que gerou sua forma e antes da consciência perceptiva”.

 

Atualmente professor do CEHTA – Centre d’Histoire et de Théorie des Arts, departamento da École des Hautes Études en Sciences Sociales – e da École Supérieure des Arts Appliqués Duperré, Emanuele Coccia, ex-assistente de Giorgio Agamben e filósofo medievalista de formação, tem se voltado cada vez mais ao estudo da cultura contemporânea, ao estatuto da imagem, e ao discurso da moda e da propaganda. Seu último livro lançado, ainda sem tradução no Brasil, traça uma instigante reflexão acerca da vida das plantas [La vie des plantes: une métaphysique du mélange, Rivages, 2016].

 

A vida sensível foi publicado no Brasil pela sempre interessante editora Cultura e Barbárie, com tradução de Diego Cervelin. A editora disponibiliza um trecho para visualização.

 

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“Vivemos porque podemos ver, ouvir, sentir, saborear o mundo que nos circunda. E somente graças ao sensível chegamos a pensar: sem as imagens que nossos sentidos são capazes de captar, nossos conceitos, tal qual já se escreveu, não passariam de regras vazias, operações conduzidas sobre o nada.”

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A VIDA SENSÍVEL

Autor: Emanuele Coccia
Editora: Cultura e Barbárie
Preço: R$ 21,60 (96 págs.)

 

 

 

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