O livro onde o céu descasca, de Lu Menezes, é tido como um dos livros mais bonitos publicados nos últimos anos no Brasil. Sua poesia desenvolve-se sobre cenários imperfeitos, transitórios, imensuráveis. Os assuntos que lhe servem como meio entroncam-se entre a solidão e o medo, a crença e a descrença, através de janelas a esmo, sotaques e paisagens distantes, palmeiras ao vento. Desvendando e decifrando enigmas naquilo que parecia evidente, seus versos exigem uma sensibilidade necessária para ultrapassar a compreensão.
Lu Menezes nasceu em São Luís do Maranhão, em 1948. Entre os melhores e também mais discretos poetas contemporâneos brasileiros, ela publica esparsamente: teve lançados os livros: O amor é tão esguio (1980), Abre-te, Rosebud! (1996) e Onde o céu descasca (2011).
Sua poesia trabalha com inversões sintáticas e brinca com ecos, através de assonâncias e do jogo entre o uso de uma terminologia refinada e arcaizante, entranhada na descrição da trama das cenas cotidianas.
Como apontou Laura Erber, professora do departamento de Teoria do Teatro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, “A leitura de alguns livros recentes, de poetas como Paulo Henriques Britto, Carlito Azevedo e Lu Menezes, mostra que a visualidade com que a poesia opera se expandiu e se diversificou, sendo a poesia visual apenas uma das várias possíveis formas de adesão do poema à experiência visual. E não se trata apenas de uma poesia sensível à questão da imagem. Nesses poetas a poesia adentra o próprio espaço discursivo da imagem e mostra que tanto o poema quanto a imagem são refratários à cristalização de significados”. Para a professora, nos poemas de onde o céu descasca, há uma “ideia de que toda imagem demanda ou exige ou provoca um gesto – precisa ser “desembrulhada” – nos leva a pensar que o que ela mostra não é o que ela revela; para entrar em contato com uma imagem é preciso mais do que a visão, é preciso “desejar ver”, como vem insistindo com razão Marie-José Mondzain. Para Mondzain é importante insistir na dimensão da invisibilidade da imagem para incluir o desejo de na “armadilha do olhar”, de modo que esse desejo permaneça para sempre irrealizado”. Laura Erber conclui, analisando o verso “a imperfeição é o nosso paraíso”: “Menezes não se contenta com um céu de simulacros – uma imagem que esconde outra e mais outra –, a sua escrita afiada e extremamente sensível à questão da cor desarma os clichês que impedem uma aproximação sensível à paisagem vista, fazendo dela algo novamente “experimentável” e não apenas consumível. O modo como Menezes associa o rigor cabralino à força desestabilizadora do “DJ do acaso” permite pensar nas estratégias criativas de alguns fotógrafos contemporâneos, como por exemplo o alemão Wolfgang Tilmans, para quem o acaso também é uma espécie de aliado substancial”.
Conforme analisa Marleide Anchieta de Lima, no universo contemporâneo, “Lu Menezes, considerada a “ourivesaria do excesso”, trabalha o poema com grande esmero na escolha lexical, oferecendo às palavras sentidos áureos. Sua poesia aparentemente magra esconde uma silhueta apolínea, devido ao trabalho significativo com a forma, rica em influências do construtivismo cabralino e do laboratório concretista”.
A revista Modo de Usar & Co. publicou poemas inéditos de Lu Menezes na edição de setembro do ano passado. É possível conferir um deles, “Fellini e a aura ruante”, no site da revista.
_____________
Luzes ao longe
Agora, é como se desse pedaço de vidro negro
com que pintores monocromatizam reduzindo
a tons, só tons a paisagem
(“vidro de Claude”)
vasta mortalha derivasse, nuvem íntima
da tinta que o polvo-mor tanto aspira,
petróleo
derramado sobre as 1001 cores de Bagdá
respingando
o Rio
da vida inteira quando na fila dos alvos de cá
sua vez
chegar enegrecendo o Corcovado verde-jade,
enegrecendo
palmeiras e azulejos do passado árabe-português,
enegrecendo
o Pão de Açúcar – sonho celeste chinês,
de tal maneira que não possas mais
preferir ver ao anoitecer
“noite, esperança e pedraria” através
do amado verso de Mallarmé
(teu vidro de Mallarmé)
porque
só em tempo de paz
segregam esperança as reentrâncias da pedraria;
só em tempo de paz
luzes ao longe – algum remoto bem
anunciam mesmo a quem o desespero tangencia
_____________
Autor: Lu Menezes
Editora: 7 letras
Preço: R$ 29,00 (110 págs.)