Literatura

Antiterapias

6 fevereiro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

O outro título vencedor do prêmio Prêmio São Paulo de Literatura na categoria “livro do ano de autor estreante”, Antiterapias, de Jacques Fux, propõe-se a criar, antes de tudo, um diálogo com a literatura.

A narrativa desenrola-se misturando as histórias de vida do protagonista a referências literárias que não são indicadas, mas incorporadas à sua fala enquanto pensa sobre si e sobre suas memórias. Entre testemunho de lembranças, elementos ficcionais, fatos históricos, bíblicos e literários, desnovela-se a biografia de um jovem judeu, que busca seu lugar no mundo, tentando pensar-se em relação à diáspora judaica e aos guetos contemporâneos. 

Escrito em primeira pessoa, o livro pode ser lido também como uma sessão de psicanálise em que o protagonista procura libertar a si mesmo de arraigadas amarras do judaísmo. Por outro lado, através de suas memórias e invenções, procura se inserir na literatura, seja ela histórica, ou seja ela fantástica.

O livro chamou a atenção do júri do prêmio por trazer termos da matemática para a literatura. Estudioso e admirador dos trabalhos do argentino Jorge Luis Borges e do francês Georges Perec, Fux diz ter se inspirado nesses escritores para promover o encontro entre campos aparentemente distantes: “O Borges usa alguns conceitos matemáticos como o infinito para desenvolver suas narrativas ficcionais. Não é exatamente um livro didático como aqueles escritos pelo Malba Tahan, onde ele explica como algumas operações matemáticas são feitas. Busquei argumentos autobiográficos, outros históricos, alguns lirismos (como os vistos nos títulos dos capítulos). Há um personagem, Martin Bormann, um fugitivo do nazismo que, de alguma forma, sintetiza essa história de alemães que vieram fugidos para a América do Sul. Quis, também, trabalhar a linguagem, um estilo diferente de literatura”.

Segundo o autor, sua proposta foi “pensar os conceitos da psicanálise, da literatura e do testemunho”, através de principalmente dois capítulos de Antiterapias. De acordo com Fux, o livro “pode ser lido como uma sessão de psicanálise e uma busca pela memória (inventada) em que o personagem principaltenta se desvencilhar das amarras judaicas, criticando a religiosidade como única forma de ser judeu. Partindo desse contexto, da frase Borgiana “que a história tivesse copiado a história já era suficientemente assombroso; que a história copiasse a literatura era inconcebível” e acompanhado pelo Complexo de Portnoy, discute-se a inserção de qualquer estrangeiro derridiano em uma comunidade”. No mesmo artigo, o autor diz também: “Desapego-me da literatura pela vida. Pela vontade de viver. Pelo desejo de reinventar a vida. Reinventar a invenção literária. A autobiografia ficcional. A autobiografia literária. Autofiçção. Redescobrir e reconstruir a ficção que aqui se acaba com a disparition do meu eu”.

Fux elucida que sua pesquisa, desenvolvida em Harvard, focada em memórias traumáticas de vítimas dos campos de concentração nazistas, forneceu importantes fontes para seu texto literário: “Refletiu muito na minha escrita, porque as memórias dessas pessoas não são tão nítidas, são atordoados pela condição de vida dos campos de concentração. Na verdade, essa memória se dá nas lacunas e nos silêncios. Mais do que na palavra”.

 

 

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Trecho:

Malditos nazistas. Eichmann. Bormann. Argentina. Brasil. Agora tudo faz sentido. Tudo se encaixa. Eu era uma criança normal. Normal, com todas as peculiaridades de uma criança judia que vivia nos guetos modernos. Tinha minha mãe e meu pai judeus, meus amigos judeus, meus parentes judeus, minha escola judia, o clube judeu e, naquela época, até pensava que o Show da Xuxa era um programa kasher. Eram muitos úteros me protegendo. O primeiro deles eu consegui romper (como todo mundo), a duras penas. sinto que depois de sair daquele lugar quentinho, úmido, confortável e seguro (ainda o procuro sempre), tomei meu primeiro pé na bunda. Na verdade, anos depois, vejo que foi só um tapinha na bunda no estilo Michelangelo, já que eu era de fato uma obra-prima e que deveria parlare. Mas mamãe logo me deu carinho, afeto, proteção e muito leite. Eu não precisava nem chorar. Teria tudo. Então nem sofri tanto com esse primeiro pontapé. Uma semana depois, cortaram o meu prepúcio. Brit-milá, meu pacto com o povo escolhido e minha imunidade em relação à maldosa Lilith. Se é que Deus e Lilith existem. Ou será que a circuncisão é realizada para se ter a certeza de estar sempre incompleto? Aqui a incompletude já é física, não há mais nada a fazer. Nunca ouvi falar em implante de prepúcio. E nunca ouvi falar em alguém que o desejasse. A verdade é que deve ter doído muito. Devo ter me assustado bastante com aquele tanto de gente comendo e bebendo de graça (onde tem comida e bebida de graça e dor alheia, tem judeus de sobra, principalmente aqueles parentes que provavelmente só apareceram no meu brit-milá e no meu bar-mitzvá). Observavam a mim e ao meu pipiu original. Tão pequenininhos nós dois… Pelo menos um deles cresceu (e nem foi muito). E ainda molharam meu bico no vinho para me ludibriar. In vino veritas. logo depois, literalmente, me castraram. A castração, plagiando por antecipação as teorias freudianas, era de fato a verdade. Alguns psicanalistas extremistas consideram o rito do brit-milá como automutilação do povo judeu e seria essa uma das explicações para o antissemitismo. Eu não sei de nada, mas desconfio de muita coisa. Não me lembro de nada. aqui já me inseria na história. Na história de Abraão e seu pacto com Deus. Na literatura medieval judaica, com a invenção de Lilith e dos dibouks. A minha própria história começava a copiar a literatura. Podia encontrar em mim os primeiros sintomas do complexo de Portnoy. Fascinante. que a história tivesse copiado a história já era suficientemente assombroso; que a história copiasse a literatura era inconcebível. Mas, mesmo assim, a minha história continuava.

Já o outro útero que sempre me protegeu – este sim, onisciente, onipresente e onipotente – eram a Mamãe e o Papai, as pessoas mais inesquecíveis que conheci na vida. deviam ser um útero feito daquele material do qual só a caixa preta dos aviões é fabricada. tudo sabiam, tudo podiam, tudo pensavam e acredito que eram capazes até de adivinhar todos os meus pensamentos, os mais íntimos, mesmo sem o conhecimento da cabala e sua devida manipulação das letras sagradas. Seriam meus pais seguidores de tzinacan e conheceriam a escrita de Deus? Seriam eles personagens literários? Fantasia? Realidade? Realismo fantástico?

Ainda outro útero me protegia. Ou deveria me proteger. Era bem maior, mais amedrontador e compartilhado com muitas outras pessoas: a escola judaica.

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ANTITERAPIAS

Autor: Jacques Fux
Editora: Scriptum
Preço: R$ 45,00 (168 págs.)

 

 

 

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