Literatura

Labirinto de si

5 fevereiro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Um dia a menos. Outro dia a menos. Um dia a menos. Outro dia a menos. Tudo o que se viveu. O tempo que nos resta. Ninguém faz essa conta aos quinze anos. Será que nos abandonamos à loucura num momento de contabilidade?

 

Em novembro do ano passado o Prêmio São Paulo de Literatura pela primeira vez dividiu a categoria “livro do ano de autor estreante” em duas subcategorias, autor com menos de quarenta anos e autor com quarenta anos ou mais. A novidade veio acompanhada por outra: ambos os prêmios da categoria foram conferidos a autores publicados por editoras independentes. O matemático e escritor mineiro Jacques Fux, de 36 anos, foi premiado pelo romance Antiterapias, publicado pela editora Scriptum, de Belo Horizonte, e a paulista Paula Fábrio, de 43 anos, ganhou o prêmio por Desnorteio, lançado pela editora Patuá. Conforme artigo da colunista Raquel Cozer na Folha de São Paulo, Paula Fábrio disse, após receber o prêmio: “Minha editora é superpequenininha, embora tenha mais de 140 livros em catálogo. É uma surpresa pra lá de agradável. Isso mostra um movimento de mercado, ter dois autores estreantes de editoras pequenas aparecendo. Mostra que há trabalho muito bom que não está nas grandes editoras”.

Desnorteio é descrito por Paula como “Uma história sobre homens nus”.

O livro narra a trajetória de três irmãos que se tornaram mendigos, numa trama fragmentada, que inicia-se nos anos 1800 e culmina na angústia tecnológica dos anos 2000, vista pelo olhar de uma narradora de cerca de 40 anos, assim a autora – “essa narradora que vai costurando a história e fazendo reflexões”. Os irmãos estabelecem um reduto de delírio em um casebre, que serve-lhes como labirinto de si mesmos. A história desenrola-se entre fragmentos de memória, vozes dissonantes e questionamentos dessa mulher de quarenta anos, que permeiam a narrativa e questionam a fragilidade das convenções sociais e os limites da sanidade. Desnorteio insere-se em uma vertigem psicológica, para criar, porém, uma visão de mundo entranhada no real.

No prefácio, Mariana Ianelli, diz: “Um punhado de areia nas mãos. Basta que essa reserva se perca e fique entre os dedos um único e pequeno grão: o grão da loucura. Pois é este pouco, esta migalha, que renova diariamente o “adeus aos velhos modos”. O que burla o tempo e nivela conquistas e derrotas. É a loucura que cobre de riquezas a indigência, que não recusa a ninguém o seu império, essa herança bem distribuída entre os membros de uma família a personagem que protagoniza este romance, multiplicando suas vozes e suas faces. Estreia corajosa de Paula Fábrio na literatura, Desnorteio tem a palavra como fio do labirinto em que se perdem Rodolfo, Miguel e Benévolo, os irmãos que abdicaram do mundo ou foram pelo mundo abandonados, devolvidos como náufragos a uma casa onde fizeram seu reduto de delírio, sua caverna de sombras no interior de São Paulo, em Sorocaba”.

 

 

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Trecho:

Com Dôrfo, não houve despedidas. Somente o silêncio latejando no cubículo. Era de noite quando notou. Já fazia muito tempo que havia percebido o irmão de volta ao casebre. Não o viu entrar pela porta da frente. De um dia para outro, Dôrfo foi depositado de novo em seu cubículo. Não estava convencido se foi o duplo ou o verdadeiro Dôrfo que saiu do hospital. O fato é que saiu. Se não fosse um homem duplicado, como Bené afirmava, havia de ser uma espécie de teletransporte ou algo parecido. Uma engenhoca de deus. Alguma travessura, talvez. Mas honestamente, como Dôrfo saíra do hospício, nunca soube. Se fora com as próprias pernas, em fuga de si mesmo, se fora devido à superlotação dos catres, ou em debandada geral, dessas que as mãos da carceragem incentivam de tempos em tempos, não sabia dizer. Se encontrasse o diretor do manicômio, este lhe diria que a cura se operara em Dôrfo. Que o eletrochoque controlado, em conjunto com o uso de anestésicos, havia decerto resolvido todos os problemas. Mesmo que uma economia e outra tenha sido necessária. Leitos e bocas, o custo do louco. Uma economiazinha na dose do anestésico. Um pequeno descontrole. Pois sim, quem nunca se descontrolou? O que importa é que Dôrfo um dia voltou. E noutro, esticara as pernas compridas, de modo que não cabiam mais no cubículo. Para Miguel, o desassossego que terminara e deixara outro em seu lugar. O desassossego de não ter mudado as coisas. E o porvir. Sempre o porvir. E a vida, sem diagnósticos. Névoa. E uma fragilidade. Óbvia. A fragilidade que te move. Que te põe em fuga permanente. O receio de sofrer como já se sofreu.

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DESNORTEIO

Autor: Paua Fábrio
Editora: Patuá
Preço: R$ 35,00 (140 págs.)

 

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