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Cinema político e poético

4 fevereiro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

fotografia: Abbas Kiarostami

Reeditado no final do ano passado, o livro Abbas Kiarostami é a primeira publicação no Brasil consagrada ao diretor iraniano. O volume reúne mais de cinquenta fotos realizadas no Norte do Irã, três textos de autoria do próprio Abbas Kiarostami, além da relação completa de sua filmografia, comentada. Os textos foram separados numa seção intitulada “Duas ou três coisas que sei de mim”, que compreende: “Fotografia e natureza”, no qual o diretor fala sobre sua atividade fotográfica, sobre suas concepções sobre a arte do enquadramento e sobre a paixão pela natureza; “No trabalho”, uma autobiografia, desde a fundação do departamento cinematográfico estatal Kanun até a concepção de seus longas-metragens; “Uma boa boa cidadã”, crônica emocionante sobre a “perseguição” do cineasta a uma menina de rua na Avenida Paulista, que remexe as lixeiras à procura de comida; e, por fim, quatro poemas inéditos.

O livro conta também com o ensaio “O real, cara e coroa – o cinema de Abbas Kiarostami”, escrito pelo crítico franco-iraniano Youssef Ishaghpour. Seu foco é o modo como o cinema de Kiarostami focaliza o real, como retrata a vida comum e os pequenos acontecimentos cotidianos.

Para Inácio Araujo, em interessante crítica escrita para o jornal Folha de São Paulo, “talvez não haja exagero em dizer que Abbas Kiarostami é o mais importante cineasta contemporâneo. Ele parece trazer em seus filmes todo o cinema moderno, de Rossellini a Rohmer, de Hitchcock a Ozu. No entanto, Abbas é o cineasta que se apaga, que, apesar da absoluta pessoalidade, não quer ser autor. Ou melhor: encerra o ciclo do “autor de cinema” sendo mais autoral do que ninguém. Explica-se o paradoxo: Abbas é o cineasta que se retira, que faz da tela um lugar onde o espectador se reflete. Um espelho, em suma: na tela, ele verá precisamente aquilo que ele próprio projeta”.

O estilo de Abbas Kiarostami é embebido das lições do neorrealismo italiano. Tornou-se conhecido no Ocidente após a revolução iraniana, com a premiação, no Festival de Locarno, do longa-metragem Onde fica a casa do meu amigo? (1987); a partir de então, ele se tornou uma espécie de ícone da resistência democrática no Irã.De seus filmes, os mais conhecidos são Close-up (1990), E a vida continua (1992, sobre uma região do norte do Irã devastada por um terremoto em 1990), O gosto de cereja (1997), Dez (2002) e Cópia fiel (2010). Como fotógrafo, Kiarostami registra exclusivamente paisagens do Irã. Também escreve poesia, parcialmente influenciada pela grande poesia mística persa dos séculos XV e XVI – suas poesias foram traduzidas para o francês sob o título Avec le vent, editadas pela P.O.L., em 2002 (a editora disponibiliza parcialmente a visualização do livro).

Segundo Eduardo Valente, em artigo escrito à Revista Cinética, “Kiarostami nos lembra o que sempre uniu seus trabalhos: uma capacidade de nos instalar no espaço extremamente rara – seja ele o espaço de um carro (Dez), o de uma praia onde patos passeiam (Five), ou o de seus filmes pelas cidades do Irã, que vieram antes. Existe uma capacidade radical e incomum neste diretor (da qual talvez Close Up seja o exemplo mais óbvio) que é a de nos fazer perceber cada pedaço da construção que faz, e ao mesmo tempo nos fazer esquecer totalmente de que está a construir algo”.

Nas palavras de Marília Kodic, que realizou entrevista com Kiarostami para a Revista Cult, “Abbas Kiarostami só faz metade de seus filmes. Com narrativas desestruturadas, sem distinção entre real e ficcional e desprovidas de finais conclusivos, o cineasta induz o espectador a um estado de incerteza, tirando-o da condição de passivo e obrigando-o a completar as entrelinhas de seus enredos”. Na entrevista, o diretor disse:

“Se os personagens e a história são bem feitos, não acho que um filme pode ser apolítico. Sempre estará sujeito à política. Por exemplo, em Como alguém apaixonado, que foi feito no Japão, há uma jovem garota que é uma acompanhante trabalhando para pagar sua mensalidade da faculdade. Em todo caso é um assunto voltado à situação pública acontecendo no país. Nenhum filme, se bem feito, fica à parte da situação política que está em seu contexto. Eu venho de um país em que os poemas são mais famosos do que pistache, caviar ou tapetes. O modo como são ditos é poético, mas não há poemas, no geral, que são bons e ao mesmo tempo apolíticos. Não estou dizendo que filmes que lidam diretamente com questões políticas não são bons ou não deveriam ser feitos, mas eu não os faria. Temos poemas de cerca de 1000 anos atrás que, quando você os lê, eles te dizem o que está acontecendo agora. Tem um que poderia ser aplicado a essa situação de hoje: “A noite está escura e sombria e ondas de medo/ e redemoinhos em turbilhão se chocam e rugem/ Como nossa voz monótona chegará aos ouvidos/ Dos viajantes na praia com sua carga de luz? [tradução livre do poema sem título de Hafez]. Isso é muito político, muito social, mas dito de um modo poético, um modo que não está sujeito ao tempo presente”.

Pode-se conferir o roteiro de Como alguém apaixonado, último filme de Abbas Kiarostami, cortesia cedida pela Imovision, distribuidora do filme no Brasil, conforme indicado pela cineasta Beatriz Seigner, em artigo publicado no blog da editora Cosacnaify.

 

 

 

ABBAS KIAROSTAMI

Autor: Abbas Kiarostami e Youssef Ishaghpour
Editora: Cosacnaify
Preço: R$ 66,50 (328 págs.)

 

 

 

 

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