Em Oswald canibal Benedito Nunes apresenta o caráter específico da antropofagia oswaldiana como conceito de desmistificação da história escrita e de crítica à sociedade patriarcal a que deram origem os cânones da história; Benedito mostra como Oswald antecipou intuitivamente toda a dialética do Modernismo brasileiro.
Em seu Manifesto Antropofágico, Oswald defendia que o “instinto caraíba” devorasse todas as “consciências enlatadas”, as “escleroses urbanas” e supostas verdades missionárias (segundo a as palavras de Raul Bopp, em Vida e Morte da Antropofagia). Assim ele expôs a necessidade de um confronto que gerasse bases mais independentes para a identidade nacional, pois sua percepção era a que “a nossa independência ainda não foi proclamada”. O manifesto termina apontando a deglutição do bispo Sardinha como um evento-chave; a respeito disso, o sociólogo Gilberto Felisberto Vasconcellos analisa, no livro Brazil no Prego: “A obra de Oswald de Andrade antecipa a antropologia dialética de Darcy Ribeiro sobre o etnocídio dos índios. […] Oswald de Andrade escolheu a data magna da América do Sul: o dia em que os Aimorés comeram o bispo Sardinha. O ritual da devoração antropofágica era a resposta ao processo da colonização diante da superioridade tecnológica e bélica do colonizador. Nem gula. Nem fome. A estética antropofágica começa pela boca do aborígine”.
Nas palavras de Benedito Nunes: “Usando-a pelo seu poder de choque, esse manifesto lança a palavra “antropofagia” como pedra de escândalo, para ferir a imaginação do leitor com a lembrança desagradável do canibalismo, transformada em possibilidade permanente da espécie”. Valorizando a “originalidade nativa” e a “estética do primitivo”, a poesia pau brasil deveria decompor, como coloca Benedito, “humoristicamente, o arcabouço intelectual da sociedade brasileira, para retomar, através dele ou contra ele, no amálgama primitivo por esse arcabouço recalcado, a originalidade nativa e para fazer desta o ingrediente de uma arte nacional exportável”.
Benedito analisa também que “precedendo a antropofagia oswaldiana, que data de 1928, há toda uma temática do canibalismo na literatura europeia da década de 20. Essa temática, associada a motivações psicológicas e sociais, exteriorizou-se por certas metáforas e imagens violentas, usadas, como meio de agressão verbal, pela retórica de choque do Futurismo e do Dadaísmo”. Ele aponta também a publicação da revista Cannibale, na mesma época, que certamente teria chegado ao conhecimento de Oswald. De acordo com Benedito Nunes, empregou-se “a combinação, ausente do epigonismo e da subserviência eufórica dos seguidores da moda, da receptividade generosa e do senso crítico que rejeita, seleciona e assimila”.
No artigo “Antropofagia e vanguarda – acerca do canibalismo literário”, Benedito Nunes diz, ao analisar o movimento de 22, que seria preciso não esquecer “o quanto variou a atitude receptiva dos principais chefes do nosso movimento às mensagens teóricas e aos estímulos estéticos procedentes das metrópoles europeias. Numa visão global da vanguarda de 22, pode-se dizer que o grau de receptividade e de resposta a esses estímulos e mensagens esteve condicionado aos diferentes momentos da dialética interna do Modernismo, segundo a ordem de seus problemas estéticos, sociais e políticos”. Segundo Benedito, “O mais tenso de tais momentos, no qual as relações com as vanguardas europeias se tornaram complexas, foi o antropofagismo”. É, pois, na ótica do primitivismo que ele encontra a coerência intelectual de Oswald de Andrade: “o Manifesto Pau-Brasil e o Manifesto Antropófago fundem e assimilam os estímulos que ele recebeu da atmosfera intelectual parisiense. Tanto o primeiro como o segundo desses documentos exprimem a consciência de uma assimilação produtiva das contribuições do estrangeiro […]. Oswald concebe essa assimilação à maneira de um princípio ativo de nossa vida intelectual, que deveria vigorar tanto no aproveitamento literário dos aspectos “bárbaros” da cultura brasileira quanto na absorção poética dos aspectos ultracivilizados do mundo técnico-industrial”. Assim, a formulação teórica dessa assimilação integrou, com o primitivismo, a dialética do movimento modernista.
Autor: Benedito Nunes
Editora: Perspectiva
Preço: R$ 14,00 (78 págs.)