Um dos livros mais comentados do ano, O capital no século XXI, de Thomas Piketty, começou nesta semana a ser vendido no Brasil. Trata-se de um abrangente estudo sobre a desigualdade. O economista francês revela que o mundo vive uma segunda “Belle Époque” financeira, concentrada em 1% da população mundial. A desigualdade aumentou ao ponto de ter voltado a patamares do século XIX; além disso, a concentração indica também uma volta ao “capitalismo patrimonial”, caracterizado pelo pertencimento das grandes fortunas não a isolados indivíduos bem-sucedidos, mas a dinastias familiares e, segundo o estudo, a riqueza hereditária é tão alastrada que torna-se praticamente indiscernível.
Piketty, que é professor na Escola de Economia de Paris, sustenta que, atualmente, é a receita do capital, e não a renda do trabalho, o fator predominante da distribuição de renda. Segundo ele, durante a Belle Époque europeia e a Gilded Age norte-americana, foi a desproporção entre a propriedade de ativos, e não a desigualdade salarial a promover a drástica disparidade de renda; ele demonstra através de dados, que estamos no caminho de volta àquele quadro social. A menos que a concentração seja, em sua opinião, combatida por tributação progressiva.
Os dados foram obtidos através do desenvolvimento que Piketty realizou, junto com alguns colegas, sobretudo Anthony Atkinson, de Oxford, e Emmanuel Saez, de Berkeley, de técnicas estatísticas pioneiras, que possibilitam o rastreamento da concentração de renda e de riqueza em épocas distantes, remontando as condições do começo do século XX, no Reino Unido e Estados Unidos, e até o final do século XVIII no caso da França.
Como demonstra Paul Krugman, colunista do New York Times e professor de Economia e Assuntos Internacionais na Universidade de Princeton – vencedor do Prêmio Nobel de Economia em 2008 –, em uma resenha detalhada e muito elucidativa, publicada na Folha de São Paulo [tradução feita por Paulo Migliacci], o trabalho de Piketty é magistral. Para ele, o resultado do estudo “foi uma revolução em nossa compreensão sobre as tendências da desigualdade em longo prazo. Antes dessa revolução, a maioria das discussões sobre a disparidade econômica mais ou menos desconsiderava os muito ricos. Alguns economistas (para não mencionar políticos) tentavam sufocar aos gritos qualquer menção à desigualdade: “De todas as tendências prejudiciais a um estudo sólido da Economia, a mais sedutora, e em minha opinião mais venenosa, é tomar por foco as questões de distribuição”, declarou Robert Lucas, da Universidade de Chicago, o mais influente macroeconomista de sua geração, em 2004. Mas mesmo aqueles que se dispunham a discutir a desigualdade se concentravam, em geral, na disparidade entre os pobres da classe trabalhadora e as pessoas prósperas, mas não mencionavam os verdadeiramente ricos”. Segundo Krugman, o estudo “respeita os princípios do empirismo, e é propelido por um arcabouço teórico que busca unificar a discussão do crescimento econômico e da distribuição tanto de renda quanto de riqueza. Piketty basicamente vê a história econômica como a história de uma corrida entre a acumulação de capital e os demais fatores que propelem o crescimento, como o crescimento populacional e o progresso tecnológico”.
Para Antonio Carlos dos Santos, economista da PUC-SP, conforme artigo publicado no Jornal do Brasil: “É um bom livro porque levanta a questão da desigualdade da riqueza, que é um aspecto importante, principalmente após a crise de 2008. Thomas Piketty fez um excelente levantamento estatístico e tem o grande mérito de ter colocado em pauta este tema da desigualdade”. De acordo com Santos, após “a Primeira Guerra Mundial, foram realizadas políticas econômicas favoráveis à redução da desigualdade. Piketty argumenta que esse período de redução não alterou o longo processo de aumento da desigualdade. No capitalismo isso seria uma tendência, ou seja, se o mercado agisse livremente, haveria o crescimento da desigualdade. Ele afirma que o único meio de reverter esse cenário é por meio de ações no campo da política”. O economista ainda acrescenta: “É bom lembrar que o livro é um entre vários estudos do Piketty, que faz parte de um grupo de economistas que realizam importantes trabalhos. É muito pouco provável que os resultados obtidos por Piketty venham a ser revertidos por novas estatísticas”.
Claudio Dedecca, economista da Unicamp, também citado no referido artigo do Jornal do Brasil, pontua que o estudo é importante pois mostra “que o capitalismo não funciona bem como promete, já que agrava as desigualdades. Na primeira metade do século XX, a Inglaterra já havia taxado as heranças para impedir esta tendência, assim como outros países europeus. Depois dos anos 80, houve um enfraquecimento da regulamentação do estado sobre a economia e foram abertas brechas para que houvesse um aumento na desigualdade, para que a taxação sobre as heranças fossem reduzidas. No Brasil há um projeto de lei formulado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, ‘dormindo’ há décadas no Congresso, que objetiva taxar as heranças para diminuir os efeitos da desigualdade”.
Segundo David Harvey, em artigo publicado no blog da editora Boitempo [tradução de Inês Castilho], Piketty, a partir “de seus dados (temperados com ótimas alusões literárias a Jane Austen e Balzac), […] deriva uma lei matemática para explicar o que acontece: o contínuo aumento da acumulação de riqueza por parte do famoso 1% (termo popularizado graças, claro, ao movimento Occupy) é devido ao simples fato de que a taxa de retorno sobre o capital (r) sempre excede a taxa de crescimento da renda (g). Isso, diz Piketty, é e sempre foi “a contradição central” do capital”. Harvey analisa que há, “contudo, uma dificuldade central no argumento de Piketty. Ele repousa sobre uma definição equivocada de capital. Capital é um processo, não uma coisa. É um processo de circulação no qual o dinheiro é usado para fazer mais dinheiro, frequentemente – mas não exclusivamente – por meio da exploração da força de trabalho. Piketty define capital como o estoque de todos os ativos em mãos de particulares, empresas e governos que podem ser negociados no mercado – não importa se estão sendo usados ou não. Isso inclui terra, imóveis e direito de propriedade intelectual, assim como coleção de arte e de joias. Como determinar o valor de todas essas coisas é um problema técnico difícil, sem solução consensual. Para calcular uma taxa de retorno, r, significativa, temos de ter uma forma de avaliar o capital inicial. Não há como avaliá-lo independentemente do valor dos bens e serviços usados para produzi-lo, ou por quanto ele pode ser vendido no mercado”. David Harvey ainda pontua que todo “o pensamento econômico neoclássico (base do pensamento de Piketty) está fundado numa tautologia. A taxa de retorno do capital depende essencialmente da taxa de crescimento, porque o capital é avaliado pelo modo como produz, e não pelo que ocorreu em sua produção. […] Se subtrairmos habitação e imóveis – para não falar do valor das coleções de arte dos financiadores de hedge – a partir da definição de capital (e as razões para sua inclusão são bastante débeis), então a explicação de Piketty para o aumento das disparidades de riqueza e renda desabariam, embora sua descrição do estado das desigualdades passadas e presentes ainda ficassem em pé”. Para ele, a leitura de Marx ainda é imprescindível; como conclui o artigo, há “muitas outras coisas valiosas nos dados coletados por Piketty. Mas, sua explicação de porque as tendências à desigualdade e à oligarquia surgem está seriamente comprometida. Suas propostas de solução para a desigualdade são ingênuas, se não utópicas. E ele certamente não produziu um modelo de trabalho para o capital do século 21. Para isso, ainda precisamos de Marx ou de seus equivalentes para os dias atuais”.
Autor: Thomas Piketty
Editora: Intrínseca
Preço mínimo: R$ 59,90 (672 págs.)