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Cerrado entre o fantástico e o real

3 fevereiro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

xilogravura de Hansen Bahia

Ontem comemorou-se cem anos do nascimento de José J. Veiga. O goiano, com ajuda do amigo Guimarães Rosa, publicou seu primeiro livro aos 44 anos: a reunião de contos O cavalinho de Platiplanto. Apenas sete anos depois ele publicou seu segundo livro, o romance A hora dos ruminantes, que, saudado pela crítica por sua prosa singular, encantou os leitores – na década de 60, esgotaram-se nove de suas edições. Fora das livrarias havia tempo, estes dois títulos são os primeiros a integrarem a cuidadosa reedição da obra completa de Veiga, agora enfim lançada pela Companhia das Letras, em homenagem a seu centenário.

A hora dos ruminantes é considerado o mais significativo romance do autor. Narra a história de uma pequena cidade, Manarairema, cuja rotina é alterada por inexplicáveis acontecimentos: um acampamento de uma legião de homens resolve instaurar-se na cidade, amedrontando os moradores, que limitam-se a especular sobre a intenção do grupo; depois, a cidade é invadida por dezenas de cães, que acuam os moradores em suas casas; por último, a cidade é invadida por centenas de bois.

No texto de orelha da 31ª edição, Edison Carneiro analisa: “Não sei se o autor fez um romance ou apólogo. A estória se enquadra em ambas as categorias. Homens e bichos (uns a serviço dos outros, uns representados pelos outros) se aliam para explorar e oprimir um pacato lugarejo do interior. Os seus habitantes, gente comum, desprevenida, reagem de acordo com as circunstâncias e a psicologia particular. Tudo se passa no plano estrito do romance. Mas, se os bichos não falam (ou falam?), a imprecisão que cerca a identidade dos homens e o mistério que envolve cães e bois estendem sobre a estória – como diria Antônio de Alcântara Machado – “um véu de alegoria”?”

O romance chegou a ser considerado uma alegoria da ditadura militar. Outros críticos a veem como representação do estranhamento e do forte sentimento de rejeição frente ao processo de modernização, no interior de Goiás.

Atmosfera fantástica, alegórica, absurda, fabular: a prosa de José J. Veiga divide a crítica. Difícil abarcá-la numa definição que logo não pareça apressada. Em resposta à classificação cunhada por muitos como expoente do realista fantástico brasileiro, o próprio autor dizia retratar o “mundo fantástico real”.

Segundo Alfredo Bosi, Veiga “encrava situações de estranheza em um contexto familiar, que evoca discretamente costumes e cenas regionais”. Para a crítica Iza Quelhas, “pode-se identificar, com recorrência, a representação de um espaço na sua dimensão física e histórica. No entanto, apesar desse reconhecimento sugerido por marcas identitárias (a paisagem do interior do Brasil ou do interior goiano, por exemplo), ocorre, no desenvolvimento fabular, o predomínio de uma suspensão de vínculos entre causa/efeito, instaurando uma constelação de acontecimentos perturbadores. Essa dispersão configura-se na ambiência de estranheza, predominando as imagens sugestivas de um local ilhado, sitiado, oprimido pelo “mesmo” e pelo “outro”, espaço de imobilismo e insólita normalidade, esta interrompida pela invasão de visitantes guiados por motivações secretas, por vezes, cruéis”. Segundo Cristóvão Tezza, A hora dos ruminantes é uma “bela e marcante fábula”.

Para Antonio Arnoni Prado, professor da Unicamp, não se trata nem de uma alegoria, nem de uma fábula: “manifestação pura e simples do estranho puro, com recorte original que se enriquece de uma vivência profunda com os temas do Brasil desconhecido e cheio de surpresas”; conforme artigo publicado no jornal Folha de São Paulo, o professor analisa: “A estranheza do matuto não é realismo mágico. É antes uma afirmação espontânea de uma sociedade primitiva em que os limites são dados pela rotina de um mundo fechado, uma cultura tão perdida quanto os rincões em que está confinada”.

A multiplicidade de possibilidades interpretativas é apenas um dos indícios da riqueza da obra. Acresce-se a esse aspecto a própria prosa de José J. Veiga: lúdica, direta, proverbial, simples; a provocar a um só tempo estranhamento e o devaneio onírico, amalgamando metáforas à realidade.

Em dado momento, por exemplo, seu narrador diz:

“A fala de cada um devia ser dada em metros quando ele nasce. Assim quem falasse à toa ia desperdiçando metragem, um belo dia abria a boca e só saía vento”.

A Companhia das Letras disponibiliza um trecho para visualização.

veiga

 

A HORA DOS RUMINANTES

Autor: José J. Veiga
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 34,90 (152 págs.)

 

 

 

 

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