Guia de Leitura

Livros que articulam mito e linguagem

3 fevereiro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

A relação entre a abstração lógica que envolve tanto os mitos como as palavras tem sido, por diferentes áreas de conhecimento, abordada e explorada. Os pontos de contato dali decorrentes oferecem ricas ramificações para se pensar as lógicas, as significações conceituais e a amplitude simbólica, quer das imagens míticas, quer das formas linguísticas.

Raiz comum, ou decorrência de uma implicação recíproca e necessária, a poesia surge nesta imbricação.

 

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Giambattista Vico, “Ciência Nova”

O filósofo italiano Giambattista Vico, em sua Ciência Nova, sustenta que os primeiros povos da gentilidade, por uma comprovada necessidade natural, foram poetas e falaram por meio de figuras poéticas. Suas histórias tiveram princípios fabulosos. Os fundadores da humanidade, segundo ele, imaginativamente criaram os deuses, com sua lógica, criaram as línguas, com sua moral, criaram os heróis. De um só golpe, história das ideias, costumes e fatos do gênero humano.

A fábula teria nascido nos tempos mudos como linguagem mental, sendo, esta, considerada como poesia, ou verso, entendido em sua primazia histórica sobre a prosa. As fábulas, para Vico, são gêneros fantásticos em que as mitologias são suas alegorias; cada metáfora, assim, vem a ser uma pequena fábula. Na mesma lógica, os primeiros poetas devem ter dado às coisas os nomes, a partir de ideias mais particulares e sensíveis. A lógica poética, assim, é demonstrada como a origem das línguas e das letras.

 

Schelling, “Filosofia da arte”

As lições de Schelling em Filosofia da arte são uma sistematização das artes e dos gêneros poéticos, bem como da reflexão estética de modo geral até o início do século XIX. Traduzido no Brasil pelo professor Márcio Suzuki, este livro é exemplar da originalidade do pensamento de Schelling, pois, nele, o filósofo defende que o impulso da criação artística parte da mitologia; propõe, assim, um deslocamento significativo na concepção do mito em relação ao logos, considerando-os duas formas complementares de compreensão do mundo.

Para Schelling, natureza e história são em si mitológicas; a poesia é, por conseguinte, a conformação da atividade livre ideal da própria razão. A matéria da arte, a mitologia, é produzida pela arte, encontra na poesia um testemunho espiritual. O círculo é uma forma importante para a consciência mitológica. A união dos signos poéticos e mitológicos, do alegórico e do histórico, em Schelling também pode ser analisada no texto “A Divina Comédia e a filosofia”, traduzido por Rubens Rodrigues Torres Filho na coleção “Os pensadores” a partir da edição de 1981. Ali, ele mostra que a poesia, linguagem figurada, à maneira da mitologia, dá ao homem uma ideia moral e estética da humanidade.

 

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Ernst Cassirer, “Linguagem e mito”

Linguagem e mito, de Ernst Cassirer, foi publicado originalmente em 1924. Sua primeira e talvez definitiva tradução no Brasil foi feita por Anatol Rosenfeld e publicada em 1972. Pela reflexão sobre as formas simbólicas, ele visa apreender os modos de objetivação que caracterizam a arte, a religião e a ciência e, sobretudo, a linguagem e o mito; base de uma antropologia filosófica e de uma filosofia da cultura, cuja unidade é encontrada no reconhecimento de uma atividade simbolizante humana.

Cassirer pensa a linguagem e o mito como correspondentes de uma mesma maneira de pensar, grosso modo, metafórica. A partir de trabalhos filosóficos e filológicos, sua investigação questiona a identidade latente entre o nome e a coisa; ele analisa a delimitação da essência em conceitos, tomando as formas intelectuais não como representações ou símbolos, mas como geradoras de seu próprio mundo significativo. Entre a formação de conceitos linguísticos e míticos, encontra coincidências essenciais, pois atua, em ambos, o mesmo impulso de enformação simbólica: uma tendência do pensamento à compressão, à concentração em um só ponto, que determina o real acento da significação. Partilhando o mesmo impulso, ele encontra o mundo da poesia, que move-se livremente entre a palavra e a imagem mítica, apreendendo-as como órgãos.

 

Levi Strauss, “O pensamento selvagem”

As conclusões de Lévi-Strauss sobre O pensamento selvagem, especialmente ao serem regidas pela análise, comparativa e metafórica, da linguagem em relação aos modos de pensar ou conhecer as coisas no mundo, mostram que os universos mítico e linguístico entrelaçam-se, como estruturas construídas por uma qualidade arquitetônica da razão. A pesquisa antropológica aqui se desdobra em uma teoria da razão, uma reflexão epistemológica que reverbera-se em questões psicológicas e históricas, as quais revertem preconceitos etnocêntricos, identificando regras do pensamento de validade universal. As analogias entre os sistemas de significação de diferentes tribos e etnias com os das sociedades europeias são surpreendentes. Revelam o caráter geral dos sistemas classificatórios como sistemas de significação. O trabalho do antropólogo, nas mãos de Lévi-Strauss neste livro grandioso, encontra amparo na lógica do bricoleur: Ele demonstra uma bricolage intelectual no pensamento selvagem, que trabalha à maneira de um caleidoscópio, produzindo arranjos estruturais a partir de fragmentos, reunidos e espelhados, e cuja utilidade é semelhante à do signo, ao assumir o lugar da coisa significada a partir de arranjos da inteligibilidade causados por relações contingentes que atualizam possibilidades. Ainda que as classificações – de nomes, mitos, totens – formem sistemas complexos e coerentes, os termos nunca tem significação intrínseca, há diferentes cargas semânticas: “sua significação é ‘de posição’, por um lado, função histórica e do contexto cultural e, por outro, da estrutura do sistema em que são chamados a figurar”.

 

Octavio Paz, “O labirinto da solidão”

Octavio Paz>, em O labirinto da solidão, reflete sobre a história do México, a identidade do país e de seu povo, seu universo mental e realidade local, seus mitos, sua lógica: a mexicanidade. Mas não só. Além de ser uma das mais importantes tentativas de situar o homem latino-americano no contexto histórico mundial, pensando os mitos, o poeta encontra questões fundamentais da formação da lógica linguistica. Paz analisa os mitos à medida que estes expressam-se na força da linguagem e da poesia, por um lado, e na solidão, por outro – sendo a solidão, para ele, um sentimento universal, componente da cultura moderna.

O mito é fala; ambos remetem a um tempo irreversível – como Paz também demonstrou ao longo de sua análise sobre Levi-Strauss, publicada em Claude Lévi-Strauss ou o Novo Festim de Esopo. A linguagem e a mitologia são, ambas, representações da história condensada. Ao pensar a história e retornar às origens do pensamento, Paz encontra o mito e a poesia entrelaçados como linguagem primordial do homem. As conseqüências da ideia de unidade entre o mito e a língua encontra-se também desenvolvida ao longo dos ensaios de O arco e a lira.

 

 

O encontro conceitual da lógica da formação do mito e da linguagem repousa sobre um processo de abstração. Questão a um só tempo epistemológica, estética, antropológica, filológica, histórica. Na formação dos conceitos míticos e linguísticos delineiam-se noções limítrofes do pensamento e de sua capacidade de abstração.

Ambos conceitos implicam-se mutuamente, ao passo que também implicam a reflexão poética e revelam mecanismos lógicos que, como símbolos, postulam uma memória compartilhada.

 

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