“Eu os conheço a todos. Reconheço-os pelas pisadas e por elas sei de seus humores, de seus sentimentos, de suas urgências, preguiças, de seu contentamento ou aflição. Sei de sua grandeza e mesquinhez. […] Eles me criaram e agora eu os crio”.
Vasto mundo, de Maria Valéria Rezende, foi publicado pela primeira vez em 2001. Foi a estreia literária da autora que retrata “causos” nordestinos, amores e dores, paisagens daquela geografia, cenários da crença fácil no que vai além do que se pode explicar. Sua prosa é de uma “delicadeza fulminante”.
São breves narrativas interligadas, que contam as histórias da vila de Farinhada, um lugarejo no nordeste brasileiro, inventado por Maria Valéria para abrigar trajetórias encantadas de personagens trabalhadores, artistas itinerantes, mulheres beatas, homens destemidos, moças sonhadoras. A trama formada pelos encontros entre suas vidas constrói um cenário calcado sobre um solo rico, porém castigado pelas intempéries da natureza.
O crítico Alfredo Monte, em resenha publicada em seu blog, “Monte de leituras”, aponta como qualidade do livro de Maria Valéria, “afora seus indiscutíveis méritos literários, o talento pronto e acabado da autora, nada titubeante ou inseguro, sua capacidade de envolver o leitor com suas histórias”. Monte conta: “[…] duas características muito relevantes e evidentes em Vasto Mundo me obcecavam: o uso do discurso indireto livre e a relação entre uma narrativa específica de um determinado autor com uma macro-narrativa. No mundo parabaiano-cósmico de Farinhada delineado por Maria Valéria, cada texto era uma peça autônoma, mas tanbém se juntando ao quebra-cabeças do conjunto ganhava em perspectiva e densidade. Valia para os dezesseis relatos ali reunidos a afirmação tão bela de Faulkner sobre a criação de Yoknapatawpha (imagine-se a minha empolgação quando descobri, muito mais tarde, que esse território literário fascinava a autora estreante tanto quanto a mim): “Substituindo a realidade pelo apócrifo teria eu possibilidade de utilizar ao máximo o talento existente. Essa descoberta abriu uma mina de ouro em forma de pessoas e assim criei um cosmos próprio. Posso movimentar essa gente como se fosse Deus, não apenas no espaço como também no tempo… Gosto de pensar que o mundo que criei é uma pedra fundamental no universo, a qual, embora pequena, causaria o seu colapso se fosse removida”.
Em outra resenha, publicada também em seu blog, mas escrita originalmente para o jornal A Tribuna, Alfredo Monte analisa: “Numa conferência sobre o papel da literatura na formação do homem, Antônio Cândido se refere à importância do regionalismo para a ficção brasileira e a seu processo de democratização: da tirania do pitoresco e do exótico, executada por um escritor representante da norma culta, o qual se diverte e diverte o leitor imitando e caricaturando uma linguagem inculta e dialetal, para uma assimilação do falar inculto e dialetal dentro da própria linguagem do narrador”. Segundo o crítico, é justamente “no extremo desse processo democratizante e solidário que se encontram os contos de Vasto Mundo, de Maria Valéria Rezende. Todos se passam no povoado de Farinhada, na Paraíba, que nem está no mapa (mas que, ora em diante, constará de toda a cartografia literária que se preze), e nos seus arredores (o sítio Ventania, Itapagi, Cataventos, onde fica o Rabo da Gata, a zona das prostitutas), e quase todos praticam o chamado discurso indireto livre, isto é, não se deixa muito claro o que pertence ao narrador e o que pertence ao personagem, portanto não há um distanciamento nítido entre culto e inculto, entre literário e popular”.
A Alfaguara disponibiliza um trecho para visualização.
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“Aquele homem enorme, que jamais se vira por aqui, sabia bem para o que viera. Estacionou o caminhão vazio no pátio do posto e atravessou a rua com passo lento e seguro em direção a Maria Laura. Não foi preciso que dissesse nada para que a multidão dos basbaques ali postados lhe fosse abrindo o caminho, até que parou na primeira fila a menos de dois metros da janela. Plantou firmemente no chão aquelas pernas que pareciam troncos, cruzou os braços que pareciam pernas sobre o peito de touro e fixou na mulher olhos grandes e doces como os de uma vaca. Não se moveu mais até a madrugada. Foi assim por mais três dias, desde que se abria a janela, ao sol das duas da tarde, até que se fechasse aos primeiros sinais do amanhecer: ele olhava a mulher e ela o olhava. Ninguém sabe o conteúdo da muda conversa que se teceu entre os dois, mas os mais próximos e atentos acreditaram perceber uma sutil mudança em Maria Laura, como se sua beleza chegasse enfim à perfeição final. Alguns já nem puderam mais mirá-la, ofuscados.”
[Trecho de “Sorte no jogo”]
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Autor: Maria Valéria Rezende
Editora: Alfaguara
Preço: R$ 29,70 (168 págs.)