Literatura

Existência sem existir

27 fevereiro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

“Fala-se em máquinas de guerra, mas nenhuma máquina é pacífica, Walser”.

schnapp

Schnapp

A máquina de Joseph Walser, do talentoso escritor português Gonçalo M. Tavares integra a tetralogia “O reino”, dedicada a pensar o período de guerras e pós-guerras, colocando em questão o mal e a violência, através da rara capacidade literária do autor para combinar ficção e investigação filosófica.

Joseph Walser é um funcionário pacato, metódico, cuja vida é padronizada pela repetição dos movimentos da máquina industrial que ele opera. Nada interfere em sua estabilidade cotidiana, verdadeira personagem-máquina em um mundo de máquinas: nem mesmo a proximidade da guerra, sequer a invasão o distraem de sua jornada, pontuada pela dedicação à sua coleção de peças únicas.

A relação paradoxal e estreita entre homem e máquina estende-se à relação entre sociedade e modernidade e à própria condição humana, maquinizada. Esse questionamento está presente em todos os livros da tetralogia.

A dimensão dialética é sincopada, pois o estado de exceção da guerra é criado a partir da violência então instaurada: não há um único inimigo, a agressão é generalizada pela máquina da guerra.

Segundo tese de Bernardo Brant, da Universidade de Brasília, pode-se levantar como hipótese “a ideia de que o autor figura esteticamente nessa obra uma experiência própria do século XXI e peculiar ao desenvolvimento à consolidação do capitalismo: a reificação”. Brant vê que a relação do protagonista com os objetos mostra um indivíduo “alheio ao mundo, dentro de um mundo impiedoso e implacável aos homens. Um mundo que se despedaça”. É por isso que: “Sua coleção de peças metálicas, muitas quebradas e imprestáveis, é o ponto alto de sua existência. A leitura que proponho é que dentro deste mundo caído, partido e quebrado, Walser coleciona peças deste mesmo mundo que já não servem a não ser como relíquia da própria destruição. A destruição que causa fascínio”.

O crítico português Pedro Miguel Gon cita uma frase do livro como exemplo do ritmo frásico de Gonçalo M. Tavares, “a existência, caro Walser, começa a deixar de existir”, e analisa: “verifica-se a dominância do reflexivo, do pensamento, da abstracção. Estes romances alimentam-se dos pensamentos dos personagens e não das movimentações das personagens. Em consonância com esses surtos de pensamento, com as micro-teorias banais, que erguem uma existência banalmente extraordinária, o texto apresenta-se fragmentado. Quem quiser fazer da leitura uma perseguição das peripécias de um personagem ou fazer uma escalada ao longo de gerações, perde aqui o seu tempo. A sinalética narrativa é mínima. Em A Máquina de Joseph Walser não se pode afirmar que a narrativa seja insuficiente, porque o fio condutor são os pensamentos de Walser num mundo preenchido, em primeiro lugar, pela máquina, e só depois, a uma grande distância, pelo encarregado da fábrica, a esposa e os colegas de jogo”. Para Gon, “A máquina do senhor Walser é simbólica. Imaginária e inimaginável. Esta máquina não é uma máquina específica. É qualquer coisa de fantástico (nem o autor a conhece bem). Sabemos que Walser coloca o corpo ao longo da máquina, encostando o peito na vertical, com cada um dos pés num pedal e enfiando as mãos em locais próprios onde segura manípulos. É uma máquina terrível que corta, que pode matar numa desatenção e mete tanto respeito quanto a guerra. Não sabemos nada mais: nem para que serve, ou o que faz, ou como faz”.

Os outros volumes que integram “O reino” são Jerusalém – vencedor do Prêmio José Saramago em 2005 e do Prêmio Portugal Telecom em 2007 –, Um homem: Klaus Klump e Aprender a Rezar na Era da Técnica – romance vencedor do Prêmio do Melhor Livro Estrangeiro na França, em 2010 –, todos publicados no Brasil pela Companhia das Letras.

A máquina de Joseph Walser é o segundo volume da tetralogia. Sua narrativa decorre exatamente no mesmo período do romance Um homem: Klaus Klump, primeiro da série. Joseph Walser, entretanto, é oposto a Klaus Klump, homem fraco, elíptico, evasivo e passivo.

A Companhia das Letras disponibiliza um trecho para visualização.

 

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Não tinha sequer uma pistola, mas eliminara a grande fraqueza da existência, fizera desaparecer a primária fragilidade da espécie: não possuía qualquer inclinação para o amor ou para a amizade! E nesse momento, a caminhar em plena rua, desarmado, observando de cima os seus sapatos castanhos, velhos, sapatos irresponsáveis como troçava Klober, nesse mesmo momento Walser sentia-se tão seguro – e ao mesmo tempo ameaçador – como se avançasse dentro de um tanque pela rua. Porém, subitamente, deu um salto para o lado. Quase pisara uma massa alta. Era um homem. E estava morto.

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joseph walser

 

A MÁQUINA DE JOSEPH WALSER

Autor: Gonçalo M. Tavares
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 27,30 (168 págs.)

 

 

 

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