Arquivo da tag: literatura portuguesa

Literatura

Os passos em volta

1 fevereiro, 2017 | Por Isabela Gaglianone

“Era uma vez um lugar com um pequeno inferno e um pequeno paraíso, e as pessoas andavam de um lado para o outro, e encontravam-nos, a eles, ao inferno e ao paraíso, e tomavam-nos como seus, e eles eram seus de verdade. As pessoas eram pequenas, mas faziam muito ruído. E diziam: é o meu inferno, é o meu paraíso. E não devemos malquerer às mitologias assim, porque são das pessoas, e neste assunto de pessoas, amá-las é que é bom. E então a gente ama as mitologias delas. À parte isso o lugar era execrável. As pessoas chiavam como ratos, e pegavam nas coisas e largavam-nas, e pegavam umas nas outras e largavam-se. Diziam: boa tarde, boa noite. E agarravam-se, e iam para a cama umas com as outras, e acordavam. Às vezes acordavam no meio da noite e agarravam-se freneticamente. Tenho medo – diziam. E depois amavam-se depressa e lavavam-se, e diziam: boa noite, boa noite” – Herberto Helder, “Lugar lugares”.

Evandro Carlos Jardim

Os passos em volta é a primeira obra em prosa de Herberto Helder, um dos maiores poetas portugueses. O livro, lançado originalmente em 1963, ganhou reedição pela Tinta-da-china Brasil em maio do ano passado.

De acordo com Eucanaã Ferraz, “Não são contos. Têm a qualidade dos poemas e o desenho retilíneo da prosa. Materialização de uma singularidade irredutível, são o que são: um estilo”. Para o poeta brasileiro, o livro “espanta-nos pela sua violência, mas também porque nele perdição e terror irrompem no plano de uma escrita ordenada e muitíssimo construída. […] este livro nos apanha e desde suas primeiras palavras começamos a dar passos em volta, já não podemos sair de seu mundo, onde tudo é solidão e deslumbramento”.

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Literatura

O retorno

27 junho, 2016 | Por Isabela Gaglianone

Junho e Julho de 1975, chegada a Lisboa dos retornados das antigas colônias na África [fotografia de Alfredo Cunha]

O romance O retorno é um relato emocionante, da premiada escritora Dulce Maria Cardoso, sobre um aspecto particular da descolonização portuguesa na África, em 1975: a dramática situação de cerca de meio milhão de colonos “retornados” a Portugal.

O protagonista é o adolescente Rui, que com sua família retorna à antiga metrópole, para recomeçarem a vida, a partir de uma situação financeira precária e limitada. O rico cenário da narrativa, o conturbado período de retorno de mais de meio milhão de cidadãos portugueses, durante a descolonização dos antigos territórios ultramarinos na África, faz, deste, um romance extremamente forte e, enquanto referência histórica, incontornável. Continue lendo

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lançamentos

Uma menina está perdida no seu século à procura do pai

19 novembro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

gravura de Samico [“João, Maria e o pavão azul”, 1960]

Acaba de ser publicado no Brasil o livro Uma menina está perdida no seu século à procura do pai, do português Gonçalo M. Tavares.

O romance se passa na Europa pós Segunda Guerra, em meio a uma paisagem de escombros, figuras esqueléticas e quase absoluto desamparo social e psicológico. Naquele cenário, uma menina e um homem perambulam por entre as ruínas. A menina é Hanna, tem catorze anos, é portadora de uma doença congênita e está em busca do pai; o homem é Marius, sujeito enigmático que parece se esconder do próprio passado. A menina, desprotegida e com dificuldades de comunicação, carrega consigo uma caixa repleta de fichas escritas que formam uma espécie de curso, com atividades e perguntas, e, a partir delas, dá-se um questionamento sobre o que é o ser humano. Juntas, as duas personagens chegam a um estranho hotel em Berlim, no qual os quartos não têm números, mas carregam os nomes dos campos de concentração que, pouco tempo antes, foram o palco do inferno para milhões de pessoas. Quando Marius pergunta por que fazem aquilo, a dona do hotel responde: “Porque podemos. Somos judeus”.

Trata-se de uma narrativa fantasmagórica e irônica, características típicas do autor português, que neste livro cria um retrato tocante da guerra e de suas vítimas.  Continue lendo

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matraca

Silêncio, beleza vulnerável

20 julho, 2015 | Por Isabela Gaglianone

Guignard

o nosso reino foi o primeiro livro publicado pelo português valter hugo mãe. Foi também o primeiro romance de sua tetralogia em letras minúsculas, composta por o remorso de baltazar serapião [2006], o apocalipse dos trabalhadores [2008] e a máquina de fazer espanhóis [2010].

Trata-se aqui da arrebatadora história de um menino de oito anos e sua vida numa pequena aldeia de pescadores portuguesa nos anos 1970, nos estertores do regime salazarista.

O próprio menino, Benjamin, é quem narra em primeira pessoa o texto, que descreve a sua busca para distinguir o bem e o mal. Pois, em meio à repressão da Igreja e aos trágicos acontecimentos a seu redor, o pequeno protagonista é tido ora como santo, ora como demônio.  Continue lendo

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Literatura

Existência sem existir

27 fevereiro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

“Fala-se em máquinas de guerra, mas nenhuma máquina é pacífica, Walser”.

schnapp

Schnapp

A máquina de Joseph Walser, do talentoso escritor português Gonçalo M. Tavares integra a tetralogia “O reino”, dedicada a pensar o período de guerras e pós-guerras, colocando em questão o mal e a violência, através da rara capacidade literária do autor para combinar ficção e investigação filosófica.

Joseph Walser é um funcionário pacato, metódico, cuja vida é padronizada pela repetição dos movimentos da máquina industrial que ele opera. Nada interfere em sua estabilidade cotidiana, verdadeira personagem-máquina em um mundo de máquinas: nem mesmo a proximidade da guerra, sequer a invasão o distraem de sua jornada, pontuada pela dedicação à sua coleção de peças únicas.

A relação paradoxal e estreita entre homem e máquina estende-se à relação entre sociedade e modernidade e à própria condição humana, maquinizada. Continue lendo

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Literatura

Pequenos episódios, um bocado bizarros

8 outubro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Paul Klee

Matteo perdeu o emprego, romance do português Gonçalo M. Tavares, é um dos finalistas do Prêmio Portugal Telecom deste ano. A narrativa, fragmentada, é ao mesmo tempo uma ficção e um ensaio sobre esta ficção, com notas explicativas a respeito dos temas apresentados. O livro é, assim, dividido em duas partes: uma, a reunião de vinte e seis fragmentos, nomeados de acordo com o nome de cada personagem que os protagoniza, organizados em ordem alfabética: Aaronson é um homem que diariamente, durante anos, caminha por meia hora passando por uma rotatória, até o dia em que muda o sentido de seu trajeto e é atropelado; a narrativa passa para Ashley, o homem que o atropelou, deste para Baumann, e assim sucessivamente até o Matteo que perde o emprego que dá nome ao título, cuja história, por sua vez, encontra-se com a de outra personagem, Nedermayer, que remete ao princípio do romance, embora não chegue a fechar um círculo com o Aaronson inicial. A segunda parte do livro, intitulada “Notas sobre Matteo Perdeu o Emprego”, faz as vezes de um posfácio crítico, em que o autor reflete sobre temas e recursos usados  na narrativa, como, por exemplo, a arbitrariedade da ordem alfabética.

Um livro engenhoso, reflexivo. Encadeado por inusitados pormenores comuns, é profundamente lúdico.  Continue lendo

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lançamentos

A condição humana e a banalidade da violência

30 setembro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

“Que quem se cala quanto me calei, não poderá morrer sem dizer tudo”.

Ilustração de Günter Grass

A publicação de uma obra póstuma de um grande escritor como Saramago é um presente inestimável aos seus tantos leitores órfãos. É também a possibilidade de ver em germe sua criação literária, torrencial e precisa.

Em junho de 2010, quando faleceu, ele deixou em aberto a narrativa da história de Artur Paz Semedo, um homem simples, empregado de uma fábrica de armas, as Produções Belona S.A – Belona é o nome da deusa romana da guerra. Funcionário exemplar, que, se por um lado ambicionava crescer profissionalmente na empresa e dirigir uma área de armamentos pesados, por outro lado encontra conflitos morais, pois fora casado com uma pacifista radical, que dele divorciara-se por não concordar com o ofício armamentista.

O lançamento de Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas – cujo título alude a dois versos da tragicomédia Exortação da guerra, de Gil Vicente – traz a lume uma obra, ainda que inconclusa, forte e bela, como comum ao grande escritor que foi Saramago. Continue lendo

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Literatura

Humor negro intelectual

2 dezembro, 2013 | Por Isabela Gaglianone

Numa das paredes exteriores do auditório a frase grafitada:

“O doutor Rojas (cuja história da literatura argentina é mais extensa do que a literatura argentina).”

Todos olharam para o senhor Borges, o grafitador do bairro. O senhor Borges sorriu. Abanou a cabeça e murmurou um pouco convincente: não fui eu.

 

 

Num jogo ambíguo com a comum idolatria aos escritores que a história da literatura já fez consagrar, o escritor Gonçalo M. Tavares, uma das figuras centrais da literatura portuguesa atual, criou um fantástico “Bairro”, cujos moradores são “o senhor Valéry”, “o senhor Brecht”, “o senhor Walser”, “o senhor Calvino”, “o senhor Swedenborg”, entre outros escritores ilustres. Um bairro que os avizinha, ao mesmo tempo os isola e humaniza. A ambiguidade desdobra-se em cada livro, de acordo com o protagonista escritor.

Em O senhor Eliot e as conferências, cada capítulo é uma conferência proferida pelo senhor Eliot , a convite do senhor Manganelli, a um público diminuto, porém intelectualmente requintado, como Borges, Breton e Swedenborg. As conferências são sobre poesia, ou mais especificamente, sobre um verso de algum poema de poetas sem relação aparente entre si: Cecília Meireles, René Char, Sylvia Plath, Marin Sorescu, W.H. Auden, Joseph Brodsky e Paul Celan. As conferências prometem explicar os versos, porém os desmontam grosseiramente até que deixem de fazer sentido e, então, propõem-lhes correções absurdas, usando de um racionalismo e de um materialismo que soariam sádicos a qualquer amante dos poetas analisados. Um humor negro intelectual, muito engenhoso. Engraçado e curioso fato: no livro O senhor Swedenborg e as investigações geométricas, o senhor Swedenborg assiste a uma conferência do senhor Eliot, exatamente sobre um verso de Sylvia Plath (verso efetivamente analisado em O senhor Eliot e as conferências) que diz: “Não sou ninguém; não tenho nada a ver com explosões”. O senhor Swedenborg se distrai logo no início da fala de Eliot e mergulha em sua obsessão sobre a geometria como um problema para a escrita e para o escritor; somente em meio aos aplausos pelo término da conferência, volta a prestar atenção.

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Literatura

À Luís de Camões

10 junho, 2009 | Por admin

O programa Tema e Variações com o Maestro Julio Medaglia, da rádio Cultura FM de São Paulo, tinha como tema o Dia de Portugal. Não sabia porque, mas ouvi atentamente à bela programação. Fiquei sabendo, depois após uma breve pesquisa, que hoje comemora-se o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, pois é o dia em que se assinala a morte de Luís Vaz de Camões em 1580.

Em busca de material sobre o poeta, deparei-me com uma edição de Os Lusíadas publicada em Paris no ano de 1865, pertencente à biblioteca da Universidade da California. Esta edição conta com um discurso preliminar (apologético e crítico), a vida de Luis de Camões – extraídos das edições publicadas em Lisboa por Thomas José de Aquino – e uma breve análise do poema de autoria de João Franco Barreto, “philologo notavel do XVII seculo”.

Ao final da “Breve Noticia da Vida de Luis de Camões”, temos uma referência às condições dos momentos finais da vida do poeta:

“No anno de 1569 chegou a Lisboa, que achou ardendo em hum horrivel contagio. Aqui em lugar do premio que merecia pelas suas gloriosas fadigas litterarias, e marciaes, entrou a experimentar novas e talvez mais
fortes adversidades, chegando a tanta miseria, que hum escravo seu chamado Antonio, pedia de noite de porta em porta para o sustentar.

Desta sorte acabou hum homem, cuja memoria, a pezar da inveja, será eterna entre os Eruditos. Morreo em Lisboa no anno de 1579, com 55 de idade; por haver nascido no de 1524. Deo-se-lhe sepultura ao lado esquerdo da entrada da porta da igreja do Convento de Santa Anna de Religiosas Franciscanas. Poucos annos depois, que foi no de 1595, Dom Gonçalo Coutinho lhe deo nova sepultura, no meio da Igreja, e lhe fez gravar na campa esta Inscripção:

AQVI IAZ LUÍS DE CAMÕES,
PRINCIPE
DOS POETAS DE SEV TEMPO:
VIVEO POBRE E MISERAVELMENTE,
E ASSI MORREO. ANNO DE M. D. LXXIX.”

(fonte: Os Lusiadas, poema epico de Luis de Camões, nova edição conforme à de 1817, de Dom José Maria de Souza Botelha, publicada em Paris Va J.-P. Alliaud, Guillard e ca, 1865.)

A morte do poeta é datada de 1579. Entretanto, em todas as outras referências à este acontecimento, o ano utilizado é o de 1580, e é marcada com precisão para o dia 10 de junho, hoje.

No livro Franklin Távora e o seu tempo, de Cláudio Aguiar (Ateliê Editorial, 1997), por exemplo, há uma referência às  “comemorações do tricentenário de nascimento de Luís de Camões”, em texto publicado na Revista Brasileira. A data é 10 de junho de 1880, e, ao abrir “as páginas especiais destinas à homenagem a Lúis de Camões, vinham as palavras de Sua Majestade, o Imperador D. Pedro II, afirmando que não hesitava em colocar seu nome

entre os dos meus patrícios, que, na grinalda de versos consagrada a Camões, o maior gênio da língua falada por dois povos irmãos, cantor das maravilhas da navegação, a que devemos o nosso Brasil, conseguiram simbolizar os mais generosos sentimentos, imitando a exuberância viçosa e bela de um só solo, cujas admiradas riquezas oferecemos cordialmente ao espírito industrioso de todas as outras nações. Estas palavras, escritas ao correr da pena, cingirão a formosa grinalda, ao menos, como laço de simpatia.”

(fonte: Imperador Dom Pedro II, Revista Brasileira, tomo IV, Primeiro Ano, Homenagem a Luiz de Camões, 10 de junho de 1880.)

As festividades realizadas no Gabinete Português de Leitura poderiam ser simbolizadas pelos trabalhos apresentados por três escritores brasileiros: Nabuco, Machado e Távora.

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